A simplicidade de sua vida era marcada por pequenos fatos que a tornavam mais interessante.
Era sonhadora e uma de suas principais
habilidades era a fantasia e imaginação rodopiava em voltas inteiras no mundo.
Dava nomes a rostos que via em fotos, sem nunca ter atentado para os nomes verdadeiros. Construía príncipes e princesas, Rapun-zéis de longas
tranças, imaginava-se em Oz e era ajudante do Mági-co, mas os duendes eram os seus favoritos. Ah, os duendes eram os seus favoritos
sim! Ficava imaginando, de sua pequena cama, en-costada na parede de madeira pintada, dezenas de anjos e duen-des tomando conta dela.
Trocava-lhe as roupas com o poder da imaginação e fazia com que eles virassem anjos de asas coloridas (na verdade as asas eram sempre azuis).
Não tinha habilidade manual, como as amiguinhas.
Nunca aprendeu a bordar e as inúmeras tentativas de formar uma flor com linhas
e agulhas resultavam num total desastre.
Pintar ou desenhar era impossível.
Os cadernos eram meio rabiscados porque não gostava quando
fi-cavam velhos. Pedia outro ao pai que, sempre surpreso com a velo-cidade com que os cadernos eram preenchidos, seguia feliz para o sótão do grande
casarão e passava a limpo as lições da escola.
Tinha uma caixinha de sapatos onde colocava, cuidadosamente, as bijuterias usadas que ganhava das moças da rua de baixo.
Interes-sante que era apenas uma sensação de poder; ela nunca as usava. Ficava horas arrumando a caixinha com seus tesouros. Um dia, quando
estava virando mocinha, começou a dar forma às suas fan-tasias, escrevendo pequenos poemas, daqueles que o sol nas-ce atrás da montanha,
as flores crescem na primavera, tudo muito óbvio; mas eram palavras dela e isso era o que importava.
Tinha amiguinhas, mas sempre teve uma tendência a ficar sozinha, pescar, andar pelas ruas de baixo, de mais acima,
do meio, do jar-dim. Uma das coisas que adorava fazer era apreciar as avencas que nasciam dos muros molhados de frio e de umidade.
Era fascinante.
Os livros fizeram parte de sua vida na rua de cima pelas mãos de vizinhos cultos e que ama até hoje. Nunca vai
esquecer o pequeno quarto de costura com os livros para serem lidos, sempre com o olhar atento do casal. Lá ela ficava horas construindo
seus caste-los, com duendes, fadas e longos caminhos floridos (onde o azul era predominante).
Alguns anos depois a menina da rua de cima seguiu outros cami-nhos, nem tão floridos, mas cheios de ternura e dedicação, desta
vez sem repaginar cadernos. Era a vida real que a acolhia.
Outro dia a menina foi rever a rua de cima de sua infância. Nada restou, nem duendes, nem peixinhos, nem os livros que
tanto ama-va, mas todas as lembranças voltaram, numa velocidade de raio.
Estão bem aqui, olhe...