Foi mais ou menos assim, a noite chegou,
fria e chuvosa, desesti-mulando qualquer tentativa de sair.
De repente, motivado talvez pela baixa temperatura que resolveu estacionar no Rio de
Janeiro, um antigo e marcante acontecimento retornou à minha memória.
Era o ano de 1967
e eu, já com razoável experiência profissional, estava embarcado como Segundo Piloto no navio Lóide Honduras rumo à Hamburgo.
Para melhor
compreensão do fato, é importante comentar que, à época, alguns tripulantes, somente descobriam a sua falta de voca-ção para a vida
marítima depois de algum tempo embarcado.
Com algum apelo emocional ou um “padrinho”, conseguiam ficar prestando serviço no escritório central
da empresa.
Ocorria, no entanto, que ao mudar a presidência, os novos dirigen-tes, na tentativa de dar novo dinamismo à administração, de
ime-diato determinavam que o pessoal do mar retornasse à sua função básica que era a de viajar.
Foi assim que
recebemos um destes arrependidos Pilotos em nosso navio.
A arte de navegar requer, além de muita prática e dedicação, uma inequívoca
vocação para a aventura aliada a uma extrema respon-sabilidade profissional.
Qualquer engano ou interpretação errônea pode gerar uma
tragé-dia.
A maior preocupação era com os quartos de serviço da madrugada quando todos dormiam e a vida da tripulação ficava nas mãos do Piloto de
Quarto.
Erros em alto mar não são tão perigosos quanto aos ocorridos pró-ximos da costa, pois ali acontecem os encalhes e colisões.
Na noite a qual
me refiro, navegávamos em pleno Canal da Man-cha, sob intenso nevoeiro, chuva e, evidentemente muito frio.
Um pequeno e importante detalhe, o
navio não tinha radar...
Ao assumir o meu quarto de madrugada (das 04 às 08), fui informa-do pelo Piloto em questão, que me antecedia, que não
tinha con-seguido uma posição confiável por total ausência de visibilidade.
Esta área era, e ainda é, muito perigosa porque a
correnteza é muito instável.
Varia de direção e intensidade com relativa rapidez e ainda se fa-zia necessário calculá-la em função da maré de Dover.
Evidente que havia alguns recursos que, por falta de interesse ou desconhecimento, não foram utilizados por ele.
Não podia perder
mais tempo!
Caso o nevoeiro permitisse, tentaria localizar o farol de Cap Levi, pois este emitia um sinal luminoso vermelho a determinados
inter-valos sendo mais fácil de identificá-lo.
Infelizmente não foi possível vê-lo.
Outro recurso disponível no momento era verificar a
sondagem, pa-ra nos certificarmos se havia perigo de encalhar.
Meu Deus!
A leitura indicava que estávamos em uma área crítica.
Outro recurso era
o radio goniômetro, aparelho que registrava o sinal sonoro emitido por alguns faróis.
Na frente deveria estar o farol do Cap Barfleur, que
felizmente emitia este sinal.
Havia, no entanto, dois problemas: De noite era acentuada a possi-bilidade de o sinal apresentar desvio e, se
ele estivesse à frente, existia a probabilidade de aumentar ainda mais este desvio...
Infelizmente eu não dispunha de outro recurso a não ser
me basear nesta marcação e na profundidade apresentada pelo ecobatímetro.
O certo seria que ele estivesse à boreste (direita) do nosso rumo, mas
para minha aflição ele estava à bombordo (esquerda).
Prova mais do que suficiente de que estávamos muito próximos à costa e em rumo de colisão
com o Cap Barfleur...
Imediatamente ordenei ao timoneiro a alteração no rumo.
Manda o
regulamento que, sempre que se altere significativamente o rumo do navio, o Comandante seja avisado.
Evidente que ninguém que é acordado de
madrugada chega de bom humor, ainda mais com o frio que fazia...
Enfim, tinha de comunicá-lo do fato ocorrido.
Entre sonolento e assustado, por
pressentir o perigo que o navio correu, foi bem ríspido comigo.
Outra questão ética era não dedurar o erro do colega, assim, tive de
controlar-me para não responder.
Felizmente o
marinheiro que tirava quarto comigo e a tudo presen-ciou deve ter comentado com os colegas pela manhã.
Como costumávamos brincar, dizíamos
que as anteparas (paredes) do navio tinham ouvidos.
O fato é que no meu quarto seguinte (das 16 às 20 h.) o Comandan-te subiu para me pedir
desculpas e dizer que no passado a Com-panhia tinha perdido um navio nas mesmas circunstâncias.
Fiz aquela expressão de resignado e disse a ele
que em Hamburgo poderia me retribuir em chopes (rsrs)...
No retorno ao
Brasil, o Piloto recuperou a sua posição no escritó-rio, certamente com o Comandante tendo argumentado que era para o bem da navegação...
E assim meus
pensamentos retornaram à normalidade do meu roti-neiro inverno existencial e, saudoso, fechei as cortinas da minha sala como fazia ao
cerrar as cortinas da escotilha do meu cama-rote...
Infelizmente falta-me agora o balanço indolente das mornas calma-rias ou o caturro(1)
quase indomável das agitadas tempestades...
Saudade dos
golfinhos que seguiam à frente do navio em acrobáti-cos saltos ou dos tubarões que nos cercavam sempre que o navio, por alguma emergência,
parava em alto mar...
E o vento?
Este inseparável companheiro que nos acompanhava sempre...
Ainda ouço o seu
canto a fustigar as retesadas adriças(2).
Seu sopro hoje me chega, com a mesma força do passado e em saudosa lembrança das marcantes e inesquecíveis aventuras.
Canta, Amigo, aquelas
velhas canções do mar para que eu possa dormir em paz...
Domingos Alicata Rio de Janeiro - RJ - 06/09/2011
(1) Caturro - O mergulhar da proa do navio, no balanço de proa a popa, produzido pela agitação do mar.
(2) Adriças - Cabo ou corda que se utiliza para içar velas, vergas, bandeiras etc...
Fundo Musical: Ebb Tide |