O que é viver...


         Final de tarde. Do mar vinham desesperados gritos de socorro. Ele estava muito revolto, com pouca gente na praia, e os salva-vidas já não estavam mais de serviço. As ondas, grandes e es-trondosas, pareciam tentar silenciar aqueles angustiantes gritos. Como é difícil nos contermos diante de alguém que esteja em imi-nente situação de morte! Sem muito refletir, confiando na minha experiência com o mar e na minha qualidade de bom nadador, em um salto já estava dentro d’água partindo em direção ao homem. Nestes momentos a rapidez é importante. Sabia de casos em que pessoas, exauridas por se debaterem por longo tempo, afundaram e seus corpos foram encontrados, após dias, em uma praia dis-tante. Isto aumentava a minha preocupação e, por imprimir maior velocidade nas braçadas e a dificuldade imposta pela dureza das ondas, sentia que a minha resistência não suportaria muito tempo. Além do mais, salvar alguém também exigia perícia. Não poderia deixar que, na sua angústia, ele me abraçasse, pois iríamos os dois para o fundo. Felizmente consegui mantê-lo calmo... Após um tem-po, que parecia infinito, consegui finalmente resgatá-lo. Com o pouco fôlego que lhe restara, olhou para mim agradecido e disse:

- Obrigado. Você me salvou a vida!

Estas palavras, em princípio, causaram-me apenas uma pro-funda sensação de dever cumprido. Em outras ocasiões já tivera oportunidade de ouvi-las; diferentes na forma, porém, semelhan-tes em sua essência. Não havia em mim o espírito do heroísmo, apenas a satisfação da solidariedade. À noite, ao me deitar, veio à mente o ocorrido e, aquelas palavras, me estimularam a uma refle-xão.

Pela primeira vez, tentei refletir com maior profundidade sobre o assunto. Na minha expressão mais simples e redundante de menino, diria apenas: Viver é não morrer, é respirar, é falar... Cer-to, mas com o passar dos anos, o menino transformou-se em rapaz e aquela definição extremamente infantil exigia uma reavaliação. Em minha vida, a noite sempre foi um convite à reflexão. Talvez pelo seu silêncio, talvez por não sermos interrompidos por motivos banais nem por telefonemas sem sentido. E assim, protegido por ela, regredi à minha infância...

Penso no tempo em que um sorvete custava pouco, mas era apenas o valor que eu tinha no bolso. Os meus pais, imigrantes ita-lianos que eram, não tinham muitas oportunidades de trabalho – praticamente nenhuma - pois brasileiros e italianos estavam em guerra, assim, os meus desejos eram bastante limitados. Ir à pada-ria comprar um sorvete era um bom motivo de satisfação. Mas, na vidasempre um mas... No caminho passou uma velhinha com as vestes rotas, um turbante na cabeça, descalça, com olhar en-tristecido e me pediu uma esmola. Não teria nada demais se eu não desse a esmola pedida, pois não tinha nenhum dinheiro além do necessário para o meu desejado sorvete e, principalmente, eu era uma criança. Mas, num impulso, carinhosamente estendi a minha mão e lhe cedi as minhas moedas. Então ela, olhando dentro dos meus olhos, agradeceu com ternura e afagou a minha cabeça. Compreendi, nesse dia, que tinha feito algo de bom e fiquei feliz; mais do que isso, tive a certeza que viver era ajudar os necessita-dos...

Penso no dia em que, pela manhã, retornando de um baile de formatura, mal tinha me deitado o telefone tocou. Quem será o engraçadinho? Imaginei ser alguém da minha turma passando trote, hábito comum na época... Não era uma voz conhecida. Após iden-tificar-se, com a voz embargada, comunicou-me a morte de um co-lega. Soube que éramos amigos, por intermédio da família, e me informava que ele estava na capela. Laconicamente agradeci. Escovei os dentes, lavei o rosto e me olhei no espelho. A fisionomia era a de cansaço e, agora, também de tristeza e inconformismo. Não sei que estranha sensação nos domina quando nos olhamos no espelho; mesmo nas situações mais inoportunas, franzimos a testa, esboçamos um sorriso, ajeitamos o cabelo, avaliamos a brancura dos dentes e, vaidosamente, lançamos um olhar crítico em busca da melhor imagem. Enlutado, fui à Capela para a dolorosa despedi-da. Apesar de ter perdido vários entes queridos, a cerimônia do adeus sempre vem acompanhada de uma sensação de vazio e impo-tência. Se os amigos ficam perplexos, a família permanece incon-solável, principalmente quando perde um filho tão jovem. Ficamos sem saber o que dizer nesse momento. Buscamos palavras que fu-jam ao lugar comum, mas não as encontramos. Quando o corpo, enfim, baixou à cova, ouviam-se somente os soluços engasgados dentro do silêncio. Permaneci por mais algum tempo. O arrastar da cimentando o jazigo sublinhava a dor daquele momento. Algu-mas lágrimas, vagarosamente, caíram dos meus olhos... Voltei pen-sativo e contrito. A imagem da sua mãe desolada, do seu corpo inerte e da dor dos demais amigos insistia em me acompanhar.

A minha alegria da festa enlutou-se ao amanhecer. Então compreendi que viver é sorrir, que viver é chorar...

Um dia sentimos um estranho vazio. Uma melancolia se acon-chega dentro de nós. As farras e as noitadas, por si , não reali-zam mais a nossa felicidade. Os romances efêmeros não respondem a um desejo mais profundo de amar. Compreendemos que o vazio do amor é muito grande e buscamos alguém que venha a nos completar. E, em busca desse alguém, compreendemos que viver é amar, é sentir o significado mais profundo das estrelas, é sentir a beleza do mar, é encontrar nela a doce cumplicidade da noite, é encontrar no reflexo do nosso espelho a imagem amada da com-panheira...

O dia se aproxima. Pela janela observo que as luzes dos edifí-cios em frente vão se acendendo. A vida começa a iluminar a rotina do novo dia. O único pensamento comum, acredito eu, é o desejo que cada um tem de realizar o seu sonho. Um novo traba-lho, a cura de uma enfermidade, o retorno de alguém querido que partiu, a aprovação no vestibular, enfim, algo que no momento represente a expressão mais próxima da felicidade de cada um. Com este momen-to, compreendi que viver é ter sempre esperança no futuro...

Entre os poetas, diversas são as definições para o que é vi-ver. Cada um se recolhe ao fundo da sua existência e, conforme a vida lhes impulsiona, vão definindo suas alegrias e amarguras.

 O exercício de reflexão por hoje acabou. Cansado, diferen-temente dos meus vizinhos, tentarei dormir. Encerro convencido de que viver é a síntese do que pensei esta noite. Viver é auxiliar os que necessitam, é ser solidário, é sorrir e chorar, é amar, é notar as estrelas chegando e ver as ondas do mar a morrerem na praia, é ter esperança no futuro, é saborear a cumplicidade da noite, é ver o dia despertar...

No entanto, se uma criança me fizer esta mesma pergunta hoje, responderei apenas:

- Viver é não morrer, é respirar, é falar...

Domingos Alicata
Rio de Janeiro - RJ - 17/03/1961




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