Corvo


         Se estiverem imaginando que irei falar daquela agourenta ave que todos temem, fiquem tranqüilos. Na realidade, Corvo era o apelido do meu amigo Luis. A vida nos reservou dois momentos bem diferentes. O primeiro aconteceu quando ainda éramos crianças e freqüentávamos o colégio (Anglo Americano). Íamos para o colégio em ônibus escolar. Fora vítima de paralisia infantil e, com aparelho nas pernas, movimentava-se com muita dificuldade. Para subir no ônibus precisava de ajuda. Nessa época ainda não éramos amigos, apenas colegas de viagem.

            Quis o destino, no entanto, que voltássemos a nos encontrar rapazes. Comecei a jogar no time de praia onde predominava a turma amiga dele. No reencontro, de imediato nos reconhecemos e retomamos a nossa amizade. Nessa época se tornara dependente do uso de cadeira de rodas e nós, seus amigos, com prazer, o guiávamos para os lugares aonde iríamos nos divertir. Pelo menos uma vez ao mês, a reunião era em sua casa. Tocava piano, sempre comentava sobre os novos cantores (as) da música popular e também apreciava um bom uísque. Resumindo, nem mesmo a sua limitação o impedia de ter uma vida bastante movimentada conosco. Como nem todo mundo é perfeito, era flamenguista...

            Esta introdução é apenas para narrar um episódio ocorrido conosco em que ele foi a vítima e, ao mesmo tempo, o alvo de muita gozação da turma.

            Frequentemente a nossa noite terminava no Beco da Fome ou nos arredores. Este episódio ocorreu especificamente no Bar Nogueira, em frente ao Beco. Antes de prosseguir, para melhor compreensão do ocorrido, quero destacar um hábito que ele tinha ao gargalhar. Normalmente, com a mão esquerda segurava a roda e, com o auxílio do corpo, dava uma pequena inclinada na cadeira para trás. Com a direita, cobria a boca como se tentasse sufocar a risada.

            Nesse dia, estávamos em uma mesa próxima ao degrau que separava o bar da calçada. Como todas as noites da nossa juventude, esta também era de muita alegria e o chope tornava a risada mais solta e prolongada. Já podem ter notado que, com a freqüência das risadas, ele estava próximo de bater o recorde de inclinações com a cadeira de rodas. À medida que o chope entra, com o tempo, tem de sair. Nós podíamos ir ao mictório, porém para ele, o acesso era difícil. O jeito era procurar um lugar mais discreto na rua para ele urinar. Para maior comodidade, ele já nem apertava o cinto, ficando assim com a calça meio frouxa.

            Risada após risada, íamos consumindo a noite. pelas tantas, após mais uma girada, ocorreu o fato. A cadeira se desestabilizou no degrau e ele rolou com ela pelo chão da calçada. Antes de qualquer reação de nossa parte, duas mulheres se precipitaram para socorrê-lo exclamando simultaneamente: - Coitado do aleijadinho! havia um problema, que também desconhecíamos, ele estava sem cueca. Por mais que ele tentasse evitar, cada uma o pegou de um lado para levantar. Assim, quando elas o levantaram, a calça, que estava frouxa, caiu deixando o “bráulio” à mostra.

            A cena foi patética, não sabíamos se ríamos ou nos mantínhamos em solidário silêncio. As mulheres ficaram petrificadas sem saberem o que fazer. Com o barulho, o foco do bar direcionou-se para nós. Por momentos a cena congelou. O próprio Corvo se encarregou de contornar o problema dando uma estridente gargalhada. Era o sinal esperado para todo o bar explodir em uma risada única. Ato contínuo corremos para auxiliá-lo e agradecer às mulheres, constrangidos é claro, pela sua solidariedade.

            Após nos certificarmos que fisicamente ele estava bem, tivemos o cuidado de colocá-lo em lugar mais protegido e retornamos aos braços da noite...

Domingos Alicata
Rio de Janeiro - RJ - 26/05/2005




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