A Primeira Viagem


            Foi uma atração irresistível. Concluído o curso de formação em Oficial de Náutica, seria necessário embarcar por seis meses em um navio mercante para realizar a praticagem, o termo marítimo para definir estágio. Era um navio cargueiro branco, majestoso, bandeira liberiana, nome cativante – “Margô” - e que tinha tudo para realizar o meu sonho. Subi rapidamente a escada íngreme de madeira em busca do Imediato para tentar obter a aprovação ao meu embarque. Apesar da possibilidade do não reconhecimento do estágio pela Escola, por se tratar de um navio fretado, a emoção da minha primeira aventura tornava-me insensível diante de qualquer tentativa de negação ao meu sonho. O navio partiria dentro de dois dias para Hamburgo, com escalas em Le Havre, Dunquerque, Antuérpia, Roterdam e Bremen. Antes, porém, pegaria carga em Recife e Natal. Desistir desta viagem, jamais!

            No dia marcado para a apresentação, estava eu pontualíssimo. O meu camarote era confortável, com banheiro individual, beliche e uma escrivaninha. No entanto, não conseguia deixar para trás o semblante triste e preocupado da minha mãe e a lágrima contida da namorada. Por mais preparado que acreditava estar, a partida sempre representa um momento de dupla solidão; para quem parte e para quem fica.

            Às 21:00 h., com o Prático a bordo, começou a manobra de desatracação. Ao atingirmos a saída da barra, ele desembarcou e todos retornaram à rotina de bordo. Daqui para frente os riscos correriam por conta do Comandante. Pela primeira vez pude observar Copacabana vista pelo ângulo do mar e procurava identificar, entre as longínquas luzes enfraquecidas pela distância, o quarteirão onde morava. Uma estranha sensação crescia dentro de mim. Finalmente o mar, em sua verdadeira grandeza, abria-se diante dos meus sonhos.

Definida a posição de partida na carta náutica, nos dirigimos para o norte. Nesta mudança de rumo, um vento diferente acariciou o meu rosto como se estivesse a dizer: - Garoto, você agora está nos meus domínios, procure ser prudente... Lembrou-me a Esfinge, decifra-me ou te devoro... Balançando seguimos vencendo a escura noite, onda por onda, até o final do meu quarto de serviço. A viagem transcorria tranqüila. Distraia-me a observar os peixes voadores e os golfinhos que iam saltando à frente do navio. Com seus movimentos graciosos não permitiam que deixássemos de admirá-los. E o azul do mar!!! Onde a quilha o feria, abria um corte azul profundo enquanto na popa ia ficando uma imensa esteira branca criada pela propulsão do hélice.

A viagem, no entanto, desenhava-se perigosa. Ao chegarmos a Natal, o navio chocou-se com o cais, obrigando-nos a permanecer mais tempo do que o previsto; em Recife o enfermeiro, devido a problemas familiares, desembarcou, assim como alguns oficiais e tripulantes desistiram de seguir viagem. A Capitania dos Portos não permitia que partíssemos sem os substitutos. Este atraso começava a preocupar o Comandante.

Resolvidos estes problemas, finalmente partirmos. Após alguns dias de viagem, atingíamos Cabo Verde, mas apenas para reabastecer de combustível. Os mais experientes comentavam que o bom tempo não era normal naquela área e, provavelmente, começaríamos a encontrar dificuldades. A temperatura cairia bastante, o mar deveria ficar mais agitado, o humor a bordo tenderia a nos tornar mais intolerantes e as expressões mais austeras devido à barba que, por comodidade, deixava-se de fazer. Para piorar a situação, o radar estava com problemas e poderia ser consertado em Le Havre.

Vencido Cabo Verde, o próximo ponto de referência seria Ilhas Canárias. Os quartos transcorriam monótonos e, com os olhos distantes e, às vezes, envolvido por doces recordações, contemplava o horizonte que teimava em não chegar... Domingo de Carnaval passávamos por Gran Canária no momento em que o tempo começava a mudar. Decorridas algumas horas, o mar piorou bastante obrigando o Comandante a mudar o rumo, de modo a receber as ondas de frente, e diminuir a marcha, manobras recomendadas nestas ocasiões. Infelizmente, isto era apenas uma prévia do que viria mais tarde... Segunda-feira o tempo amainou, porém, na terça-feira, a tempestade se apresentou na sua forma mais temível. Vento fortíssimo, chuva, frio, ondas de até dez metros de altura! Foi dada a ordem para fechar todas as portas estanques que davam acesso ao interior do navio. Tínhamos nos transformado em uma bolha flutuante. A cada onda que invadia a proa, maior dificuldade tinha o Margô para subir antes que a próxima o atingisse. Ao final da terceira onda, ela passava por sobre o convés e explodia, com estrondo, direto na superestrutura logo abaixo do passadiço. Pelo ranger da sua estrutura, dava sinais de sentir os golpes. Para voltar à superfície, era obrigado a deslocar toneladas d' água de cima dele, o que causava uma trepidação enorme. O hélice, que no movimento oposto, girava fora d’água, igualmente emitia sons angustiantes. O vento obrigava as ondas a curvarem suas cristas que, revoltadas, se uniam formando um imenso lençol branco de espuma até o limite onde os olhos pudessem atingir. Nos raros momentos em que se tentava dormir, estes efeitos davam a nítida impressão de se estar seguindo em direção ao fundo do mar. Era necessário levantar do beliche e olhar pela vigia para se certificar de que tudo era apenas uma mórbida sensação... O Comandante, com freqüência, subia ao passadiço em solidariedade ao oficial de quarto. Mesmo os oficiais que não estavam de serviço, após o descanso subiam para reforçar a segurança e criar um consenso sobre a situação.

Agora teríamos pela frente o sempre temido Golfo da Biscaia, caminho obrigatório para se chegar a Le Havre. O boletim meteorológico informava que no seu interior a condição do mar estava ainda pior. Sem radar e com o navio quase vazio, seria uma loucura tentar enfrentá-lo. Os balanços do Margô eram preocupantes – 32 graus – e passou-se a relatá-los no diário de bordo para nos resguardarmos de possíveis avarias na carga. Caminhar a bordo era difícil, andava-se pelos corredores com os braços abertos tentando se equilibrar com a ajuda das paredes. Por dois dias atingimos a entrada do Golfo e, por prudência, decidimos não enfrentá-lo. As manobras para retorno, pelo efeito das ondas, eram de muito risco. Normalmente elas se repetem em séries de quatro a cinco. Devia-se aguardar, com paciência e sangue frio, o momento oportuno entre elas para girar o navio e voltar sem ser atingido lateralmente. Em uma das manobras, não conseguimos evitar que uma onda menor nos pegasse de través. Impressionante como toneladas de ferro ficam impotentes diante de uma onda mais forte. Fomos puxados no seu rastro como se fôssemos uma pequena embarcação deixando-nos a imaginar o que aconteceria se tivéssemos sido atingidos por uma onda mais forte...

Pelo rádio o Telegrafista acompanhava as informações sobre o tempo. Irrompiam pedidos de socorro das embarcações menores, principalmente barcos de pesca, mas como estavam mais pertos da costa, não era possível atendê-los. Isto competiria aos navios mais próximos e às equipes de salvatagem. O nevoeiro e a falta do radar nos obrigavam a reduzir a marcha ao mínimo e, simultaneamente, com intervalos regulares, soar o apito e tocar o sino de proa. Literalmente tateávamos o oceano e nos aproveitávamos de qualquer brecha no nevoeiro para tentar confirmar a posição e avaliar a proximidade de outros navios.

A guarnição, apesar de apreensiva, conseguia manter a calma. O Enfermeiro, atento, dava suporte aos mais nervosos. Alguns não conseguiam suportar a angústia e se socorriam nos calmantes. A maioria, no entanto era experiente e tinha passado, provavelmente, por situações semelhantes. Os Oficiais procuravam transmitir segurança, mas era natural que a guarnição acreditasse se tratar apenas de simples palavras para ocultar a realidade. Pensando bem, é terrível estar no meio de uma tempestade sem ter a real noção da extensão da mesma. Muitos não sabiam nadar; não que adiantasse muito saber nadar naquela tormenta, mas psicologicamente, ajudava a manter a calma. Eu não sei explicar se por coragem ou ignorância, aquela situação me fascinava. Afinal, foi este tipo de aventura que pesou na minha opção pela Marinha. Na infância, os quadros que representavam navios sob mau tempo ou filmes que mostrassem momentos de tempestades como esta que estávamos enfrentando, conseguiam me fazer sentir como se estivesse participando das cenas.

Finalmente o mar se acalmou permitindo-nos entrar no Golfo. Aos poucos os tripulantes foram retornando ao convés para ter a certeza de que a tempestade, de fato, tinha passado. As expressões de angústia iam sendo substituídas por tímidos sorrisos que, com o passar das horas, foram se tornando mais firmes e sinceros. Olhares fraternos e solidários voltavam aos semblantes. As brincadeiras relembrando os momentos mais delicados e críticos que foram superados começavam a descontrair o ambiente. Sentia-se no olhar do Comandante certo orgulho pelo comportamento solidário e competente da tripulação do navio. O maior desejo agora era relaxar e dormir...

Após três meses e meio de viagem, numa radiosa manhã de maio, finalmente retornávamos ao Rio de Janeiro. Era meado de outono. O rapaz inexperiente que partira há meses retornava enriquecido agora pelas lições de vida e de solidariedade. Soube que a viagem para mim terminaria ali. A Empresa não renovaria o contrato de Fretamento com o Armador. O Margô retornaria a Hamburgo, para ser entregue, com a tripulação reduzida uma vez que a volta seria por avião.

Do cais lancei o último olhar para aquele navio que viria a marcar tanto a minha vida. Os amigos acenavam do convés. Com os meus sonhos e bagagens, lentamente fui me afastando. Vez por outra ainda me voltava para acenar-lhes. Peguei um táxi e me afastei ainda envolvido pelas lembranças daquela viagem; em pouco tempo reveria meus amigos e entes queridos. Os olhos tornaram-se turvos, um nó refugiou-se na minha garganta e mais uma página do destino estava virada...

Domingos Alicata
Rio de Janeiro - RJ - 14/05/2004




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