A farda


            Esta manhã minha esposa retornou do trabalho infectada pelo vírus da nostalgia. Sentindo a minha curiosidade, começou a relatar o fato que originou tal saudosismo. A caminho da escola, parada diante de um sinal de trânsito, avistou três guardas-mari-nha que atravessavam garbosos a rua. Estavam de farda branca, a favorita dela na época em que eu estudava para me tornar um Ofi-cial de Náutica. Um, em particular, era a minha imagem e seme-lhança da época de rapaz. Continua ela:

         - Forte, queimado de praia, jeito de andar... Confesso que, nesse momento, comecei também a ter saudades de mim.

            Na verdade, eu era da Escola de Marinha Mercante que, apesar de formar oficiais civis, era administrada e desenvolvida nos padrões da Marinha de Guerra. Inclusive a administração e o regi-me, eram militares. Como era natural, existia um clima de rivali-dade entre ambas.

            Eu, particularmente, optei pela Marinha Mercante devido à possibilidade das viagens constantes, aventuras, emoção de atingir portos jamais imaginados. Resumindo, queria ser, de fato, um ver-dadeirolobo do mar”; jamais me rendendo às  agruras da vida marítima. Com o correr dos anos, no entanto, o desestímulo à construção naval, empresas mal administradas e o não reconhe-cimento salarial proporcional ao sacrifício enfrentado, fez-me acreditar que a opção militar teria sido melhor.

            Deixemos, por ora, lamentos de fatos que não interessam mais e nem podem ser modificados. Voltemos àquela época. Sentia que, mais do que hoje, a farda exercia certo fascínio entre as meninas. Talvez pela garantia de uma carreira estável, talvez pela seleção rigorosa pela qual somente os supostamente inteligentes logravam passar no difícil exame de admissão. Além do mais, a severa disciplina, comentavam, nos tornava diferentes dos outros rapazes. O fato é que notávamos uma especial admiração quando passávamos.


            Ainda garoto, minha mãe não admitia a hipótese de que eu não fosse da Marinha. Dizia ela: - “Nem que eu tenha que te amar-rar ao mastro”! Como sempre fui enfeitiçado pelo mar, a idéia me era simpática. Sempre que o Navio Escola Almirante Saldanha pas-sava por Copacabana, corria para admirar a majestosa figura com suas velas enfunadas. À época, morava conosco uma senhora viúva cujo filho era guarda-marinha. Quando soube do meu desejo de se-guir a carreira naval, presenteou-me com sua antiga capa pelerine. Na minha vibração, torcia para que chovesse para sair com ela. Era o dia em que eu ficava mais solícito. Ia à padaria, ao jornaleiro e a qualquer lugar desde que, evidentemente, pudesse vesti-la. A diferença de idade - eu tinha somente dez anos - e de estatura fa-ziam com que ela quase tocasse o chão. Apesar da caricata figura, nada podia conspirar contra o meu sonho...

            No entanto, quando ingressei na vida profissional, minha mãe sentiu que a realidade era mais dura. As viagens variavam de três a seis meses. Às vezes ficávamos no Rio de Janeiro apenas poucos dias, ou até horas, e já partíamos para outra viagem. Por cartas, comentava as dificuldades enfrentadas: frio, furacão, de-sastres iminentes que conseguíamos evitar, resumindo, eu adorava as aventuras e perigos enfrentados, mas elas sofriam muito. Quan-do digo elas é que nessa ocasião começava a existir a figura da minha namorada e atual esposa. Em parceria, vasculhavam os ma-pas buscando o meu destino e tentando que suas cartas coincidis-sem com a minha chegada a determinado porto. Confesso que essas cartas eram ansiosamente aguardadas. Apesar de tristes, jamais interferiram na minha opção pela carreira naval. Devido ao desestímulo comentado no início, finalmente decidi desembarcar e partir para uma nova vida em uma grande empresa multinacional. Lembro-me que fui admitido ganhando o dobro do último salário e, evidentemente, sem os riscos e desconfortos enfrentados.

            Após estas considerações, ficou a dúvida: - Recolho-me à resignação da idade ou enalteço o desejo natural de não esquecer os venturosos momentos? O fato é que nós dois ficamos um bom tempo rememorando episódios do passado. Alguns, admito, nem nos lembrávamos mais com exatidão. Um vaidoso desejo nos levou a rever nossas fotos antigas e, com um misto de orgulho e bom humor, jogamos na cara dos nossos filhos:

            - Nós também já fomos jovens!

            Vejam amigos! Como uma simples visão despretensiosa, despertou em nós todas estas considerações sobre o passado! Sen-timos que até conseguimos transformar o sofrimento de certos mo-mentos difíceis em doces vitórias alcançadas com a cumplicidade do amor...

Domingos Alicata
Rio de Janeiro - RJ - 15/03/2005




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