Na caminhada matinal deste domingo, tento revigorar meus enfraquecidos músculos. Um tom de pele ligeiramente moreno relembra o antigo rapaz
que, incansável, se dividia entre as peladas e o frescobol. Que os mais modernos não confundam peladas com sexo, eram apenas as inocentes
partidas de futebol disputadas na informalidade da praia. Por precaução esclarecerei também que frescobol nada tinha a ver com “frescura”, era
apenas o jogo de raquete à beira mar... Já que comecei a fazer certos es-clarecimentos, é bom explicar que pegar jacaré era simplesmente
deslizar na onda sob o efeito de vigorosas braçadas ou utilizando uma pequena tábua de madeira, hoje substituídas pelas de surf, coisa que
também praticava à perfeição. Modernamente a expres-são pelada foi substituída por rachão, mantendo, ainda assim, certa conotação sexual.
Pegar jacaré virou surf de peito, quanto ao frescobol, creio que se manteve a denominação.
Voltando à minha caminhada, ali encontro um vasto campo de estudo social. Idosos e jovens, atletas e portadores de
deficiências, belas e feias, todos aproveitam esta linda manhã de sol... Este momento é o meu preferido para reflexões, sempre ao som das minhas
músicas favoritas gravadas no MP3.
Não raro, encontramos alguns artistas
exibindo sua arte ou fazendo propaganda do seu espetáculo. Cantores populares como o Dicró e o Agnaldo Timóteo improvisam barraquinhas para
venderem seus CD’s independentes, assim como grupos peruanos tentam sobreviver com a venda das suas músicas andinas.
Pouco depois de passar pelo Hotel Copacabana Palace, um homem transformado em estátua viva, mantinha sua
admirável imobilidade. Corpo pintado em prateado, vestimenta de soldado grego, lá estava imponente e imóvel o nosso Ulysses de Copacabana
resistindo às diversas tentativas da garotada em fazê-lo se mexer. Confesso que passei sem dar muita importância, visto já estar
familiarizado a este tipo de exibição. A caminhada exige certo ritmo para ser eficaz, por isso temos que a tudo observar sem nos determos em
admirações mais longas.
Cumprido metade do percurso, retorno.
Apesar de estarmos no inverno, a exposição ao sol começa a me fazer suar. O Rio de Janeiro tem esta vantagem, se não nos avisarem que
estamos no inverso, ele passa despercebido e nem chegamos a tirar os agasalhos do armário.
A paisagem em nada se altera e lá reencontro o meu Ulysses de Copacabana rígido como um soldado da Rainha.
Mas, à medida que me aproximo, vejo uma senhora já bem idosa sendo empurrada em sua cadeira de rodas por sua acompanhante. Elas param em
frente à humana estátua e ficam a admirar a arte. A senhora, aparentemente, não realiza bem o que ocorre. Parece-me que um mal
degenerativo a torna insensível ao momento. Súbito, a cena vai se alterando... Em lento e robótico movimento o homem estátua vai
adquirindo alma! Na magia de um ato, uma linda flor branca brota de suas mãos e, ainda fiel à delicadeza do momento, seu corpo se curva em
inesperada reverência e deposita a flor nas envelhecidas mãos.
Os olhinhos da senhora se revestem de uma
expressiva vivacidade e seus lábios balbuciam algo incompreendido, mas emoldurados por um doce e inesquecível sorriso. Somente naquele momento
observei a sacola para depósito de contribuições, quase oculta diante deste singular momento. Instintivamente curvei-me em reverência aos dois
atos de vida e depositei o meu reconhe-cimento por esta lição de amor. Modesta contribuição em prol da sobrevivência da arte humana...
A vontade inicial foi a de me ajoelhar contrito em reverência a este ato tão simples de ternura, mas também tão
raro de o presenciarmos. Revigorado em meus ideais de paz e compreensão, continuei a minha caminhada. Meio estátua, meio homem, o antigo rapaz
moreno e cheio de nobres ideais, renasceu em mim. Pena que o vigor moral não consiga resgatar o vigor físico e, na ginga da idade, prossegui
pensativo...
O comovente e épico encontro da arte com a velhice encarre- gou-se de tornar o meu
domingo mais humano e esperançoso quanto aos valores básicos da sociedade.