Testando meus limites...


        Finalmente o outono chegou, mas ainda vestido de verão... O Sol, forte para esta época, inutilmente tenta limitar a minha caminhada, mas resisto! Pelo meu velho calçadão da Praia do Leme, um a um vou vencendo os meus quilômetros matinais.

        Pele bronzeada, bem mais magro, energia aos poucos recuperada após mais uma cirurgia, lá vou eu a divagar sobre os encantos da vida... E, por falar em encanto, logo ela surge. Corpo graciosamente acomodado em um maiô de duas peças, tênis branco, morenamente linda na sua meia idade. Apenas um pequeno defeito, estava acompanhada (rsrs)... A natureza foi muito generosa com ela! O seu sensual e cadenciado caminhar deixa um rastro de nobreza ao longo da ondulada calçada. Abrigado em meus escuros óculos, domino a minha timidez e acompanho a sua aproximação com aquele olhar caricato de antigo galã de filme italiano. O vigor dos seus firmes passos transforma este momento em exíguos segundos e logo ela já segue por trás de mim. Inconformado pela rapidez deste encantamento, não resisto a me virar e dar aquele olhar meio perdido para trás... Se a primeira imagem deixou estranhos desejos, esta segunda tornava-a quase irresistível. Encabulado com este juvenil arroubo retomo o meu caminho não sem antes reconhecer, com humildade, tratar-se de muita areia para o meu caminhãozinho...

        Na sequência, visões menos eróticas me acompanham. Alguns idosos, já em cadeiras-de-rodas, sendo levados para pegar o sol da manhã. Outros ainda fisicamente saudáveis, sozinhos ou em grupos a passear. As mães, reunidas nos quiosques com seus filhos, sorriem alegremente. Algumas, enquanto conversam, amamentam. Casais, com mãos e desejos entrelaçados, namoram. O guarda, em sua patrulha diária nas motos adaptadas para correr na areia, circula com rapidez. A garotada maior tentando aprender a jogar futebol, na irresistível busca da fama e do dinheiro fácil. E, lógico, boêmios acomodados em alcoólicos sonhos, para os quais a noite ainda não tinha terminado, bebem a eterna saideira. Estes sempre contando com a minha compreensão, pois a vida, às vezes, justifica!

        Com o suor começando a correr pela testa, vou chegando aos últimos cem metros da caminhada. Meio perdido em minhas divagações, ouço alguém me chamar:

- Oi, tio!

Não reconheço o rapaz negro, vestido com simplicidade e com uma mochila nas costas. Emparelhado comigo e antes mesmo que eu me recupere do espanto, dispara:

- Cuidando da saúde...

Concordo com um ééé um pouco prolongado e um indefinido sorriso desenhado rapidamente na surpresa do momento. O que ele desejava com esta aproximação? Assim do nada! Mas, sem me dar muito tempo para pensar, emenda mais uma pergunta:

- E esta cicatriz na barrida, o que foi?

Tento explicar que tive que operar um aneurisma aórtico, mas antes mesmo que termine a minha explicação, me interrompe:

- O que é isso?

Explico da forma mais simplificada que posso e procuro mudar de assunto. Pensei em falar sobre as cicatrizes da alma, sempre mais profundas do que as do corpo... Das dores das perdas dos amores, das ilusões, dos velhos amigos, da juventude. Da tentativa de transformar as minhas crônicas dores de amor em doces e suaves crônicas da vida. Mas para isto necessitaria de um tempo que, neste momento, com certeza não o teria. Já quase me sentindo um filósofo, cheguei a desabafar baixinho comigo mesmo:

- A vida consiste na inevitável perda das nossas mais profundas emoções...

Não deu para falar mais, chegava ao final da minha caminhada. Cumprimentei-o, com simpatia, ainda aguardando que me fizesse algum pedido de ajuda, mas ele me desejou simplesmente que Jesus me acompanhasse...

Parado, guardando o sinal abrir para que eu pudesse atravessar, eis que revejo a bela morena retornando. Aposto até que vocês já tinham se esquecido dela... Enquanto aproveitava a nova oportunidade para admirá-la, pensei rindo comigo mesmo:

- Merecimento ou simplesmente Jesus está testando meus velhos limites?

Com aquele andar de garoto marrento, atravesso a rua disfarçando o meu inseguro caminhar...

E ligeiramente perdido em meus outonais sonhos...

Domingos Alicata
Rio de Janeiro - RJ - 31/03/2009




Fundo Musical: Dancing on the clouds - Ernesto Cortázar
 

 
Anterior Próxima Crônicas Menu Principal