Tarde atípica de primavera. O
velho sudoeste entrou com a deter-minação do inverno. E a chuva acompanhou-o com a tristeza das cinzentas nuvens. Sábado, o quê
fazer? O desejo é o de ficar em casa, mas a solidão me impele a ir ao Shopping. Lá, pelo menos, posso visitar uma boa livraria, jantar
com calma, admirar coisas belas... Isto mesmo, o melhor é fazer isto mesmo...
Ao chegar, noto que muita gente teve a mesma ideia, pois ele está cheio. Sinal de que devo desembrulhar a
minha beneditina paciên-cia para suportar sem irritação o disputado espaço. Tenho que reconhecer que esta virtude eu a tenho de sobra,
saber me adaptar bem às mais diversas situações. Vitrine por vitrine, andar por andar, lá vou eu devorando o tempo. Única
frustração é verificar que algumas coisas estão um pouco fora das minhas possibilidades, meus reais desejos. Nem tanto as materiais,
mas as subjetivas, como verão ao final (rsrs)... E assim vou eu seguindo e carregando minhas veniais frustrações.
Lembrei-me de que precisava tirar uma dúvida sobre um telefone celular recém comprado. Dirigi-me à loja e,
munido da senha, fico a aguardar pacientemente pela minha vez. Acomodado no pequeno pufe, recorro ao meu saudável hábito de
observar pessoas. Não ne-cessariamente com o olhar enviesado da crítica gratuita. Talvez aquela natural necessidade de quem gosta de
escrever e sempre anda a procurar por personagens que possam enriquecer sua imagi-nação. Lógico que num local com tanta gente não
será difícil fazer uma rica seleção. Observei a menina grávida, vaidosa da sua condi-ção, mas com a irritação inadequada para o seu
estado. Nem sempre o atendimento preferencial leva às mais rápidas soluções. Vi o senhor já idoso socorrendo-se do filho para enfrentar
com menor insegurança as artimanhas da modernidade. Avós desajeita-dos, ou já limitados no andar, a correr atrás de
irrequietos neti-nhos. Divertia-me ainda ao ver a reação dos que se assustavam ao examinar um novo modelo de aparelho exposto para
demonstra-ção. Ocorria que, quando puxado além de certo limite, soava um alarme e a pessoa fazia aquela cara de espanto enquanto aguarda-va
a funcionária vir desativá-lo (rsrs)... Mais parecia uma pegadi-nha!
A minha personagem poderia ser qualquer uma destas pessoas, não fosse a chegada dela, a que resolvi chamar
de a Mulher do Shop-ping. Meia idade, andar deliciosamente abandonado ao sabor dos seus belos quadris. Corpo insinuante e valorizado pelo
rico reque-brar do seu caminhar. Cabelos lisos e com discretas luzes davam-lhe um ar de leveza. Por instantes imaginei-a levitando, tal o
charme do seu chegar... Chamou-me a atenção, no entanto, o seu sorriso... Talvez mais um esboço do que um sorriso propriamente
dito, mas com uma capacidade incrível de transmitir prazer. Diria até o suficiente para denunciar a sua certeza de saber que estava
agradando (rsrs)... A palavra que me ocorreu de imediato para defini-lo foi orgásmico. Sorriso orgásmico é o termo exato! E o
olhar, fiel ao sorriso, o completava... O ambiente, de imediato, impregnou-se de um súbito prazer ficando mais Vivo ainda (rsrs)... O
vovô olhando por cima das lentes, restava encantado. O senhor, disfarçando o olhar por sobre o ombro do filho, perdido estava. Até
a menina grávida fingiu não ver o jovem marido suspirar...
Sei que nesta altura devem estar perguntando curiosos: - E você?
Claro que minha imaginação não poderia ficar imune a esta cena tão forte (rsrs)... Sedutoramente a despi e
ofereci este corpo já não tão jovem, mas ainda rico em desejos e devaneios. Em meus lábios já saboreava o sensual vinho do prazer.
Súbito um leve encostar de mão em meu ombro me desperta para a realidade!
- Chamaram a tua senha, sussurra minha esposa quebrando meu profundo encanto...
Com aquele andar de idoso não assumido encaminho-me para a atendente número quatro e, com jovial sorriso,
vou expondo mi-nhas dúvidas. Evidente que, enquanto ela buscava as respostas no computador, eu voltava a admirar a minha especial personagem.
Não sei se exagero, mas a tarde ficou subitamente mais bela e eleve.
Pequenos sortilégios da vida...