Tarde cinzenta, quase sem vida... A
chuva que até então caia copiosamente, resolve dar uma trégua. Do seu canto o meu cão lança-me aquele olhar inquisitivo e suplicante como a
dizer: - Não vai passear comigo hoje? Confesso que o seu olhar é irresisti-velmente sedutor. Com um sorriso complacente encaminho-me para
pegar sua guia e aproveito para fazer-lhe, de passagem, um afetuoso afago. Este é o nosso código secreto que indica a minha concordância...
O seu olhar se aviva enquanto abana com vigor o pequeno rabo.
Em pouco
tempo já cruzamos a rua evitando pisar nas poças d`água que nos cercam. Nestes dias aproveito que a praia está vazia e gosto de caminhar com ele
pela beirinha, bem ali onde o mar e a areia brincam de amor. Pelos anos que faço este ritual, sinto-me já parte integrante deste idílio...
Menino ainda, ao primeiro sinal de chuva, já corria para o mar sob os gritos preocupados da minha mãe. Por mais que alertasse sobre os perigos
dos raios, nada alterava o meu resoluto prazer de me entregar a ele. A chuva exercia um poder mágico! A água ficava morna, as ondas se
acalmavam e aquela solidão cinzenta parecia trazer-me alguma mensagem que faltava decifrar.
Hoje, no
entanto, o antigo menino não me acompanha. De tênis e roupa apropriada para enfrentar o velho sudoeste, um despreocupado senhor apenas levava o
seu cão para passear. Enquanto corríamos das ondas, que às vezes avançavam sobre nós, deixávamos escapar um grito de prazer! O seu olhar
espantado sempre encontrava o meu sorriso. Ao longe vagavam pequenos barcos de pesca na sua rotina em busca da sobrevivência. Alguns vinham
até próximos à praia em constante desafio às ondas maiores que ameaçavam abraçá-los. Mesmo à distância, podia ouvir o redobrado esforço dos seus
motores para vencê-las. Mais ao longe alguns navios fundeados aguardavam pelo momento de atracar.
Impossível
não recuperar a lembrança dos momentos em que também meu navio ficava dias aguardando por este momento em portos estrangeiros. E a solidão
daqueles dias ressurge com uma intensidade inesperada, mas que parece tão recente... Sento-me na areia ainda umedecida pela recente chuva e
fico a divagar. Com olhar terno e envelhecido observo as imóveis ilhas encravadas nas profundas águas. Imagens de prazer e de tragédia passeiam
pela minha mente sem nenhum senso analítico. Apenas desfilam livres, aleatórias, sem se prenderem à cronologia da história. Fatos e
personagens desfilam por este mágico palco onde a vida produziu o seu próprio enredo e nós, dentro da importância com que consegui-mos nos
construir, desempenhamos o nosso papel...
O vento
constante e frio deixa meus lábios ressecados. Enquanto aliso com carinho o pêlo adamascado do meu cão, passo levemente a língua pelos
meus lábios para umedecê-los e sinto o gosto do sal que neles se refugia. Instintivamente, como nos tempos de namoro, sou tentado a
desenhar alguma coisa na areia. Naqueles tempos predominava entre os apaixonados o costume de desenhar um coração cortado por uma flecha com
as iniciais, nossa e da namoradinha, dentro dele... Hoje, no entanto, preferi simplesmente escrever “saudade”.
E naquele
silêncio, apenas interrompido pelo quebrar das ondas, comecei a compreender melhor que o momento da desconstrução se avizinha.
Finalmente a cronologia da vida ganhava cores mais definidas e, na certeza da triste finitude humana, reiniciei meu caminho de volta. O
vigor do cão e a minha figura já ligeiramente recurvada pelos anos começam a contrastar no observar distante das pessoas que passam pela
calçada...
Pequenas
gotas de chuva recomeçaram a cair. Em passo acelerado procuro evitar me molhar. Súbito um fascinante desejo infantil retorna, diminuo
gradativamente o meu caminhar, e deixo que a chuva, em seu significado mais profundo, me envolva... Agora sim, o adulto e a criança se
reencontram sob uma cristalina cortina de emoção. Enquanto meu cão busca, em bruscos movimentos, retirar a chuva que abraça o seu corpo,
sinto o prazer da vida a descer pela minha fronte e o sabor prazeroso do céu a chegar...