Sei
que nem todos gostam de ir a dentistas. Não por eles em si, mas por
causa daquela assustadora cadeira que, por mais que a tecnologia
procure disfarçar, sempre deixa a forte e inevitável sensação de
sofrimento... Hoje, no entanto, não corro o menor risco de sofrer,
pois quem na realidade está indo se consultar é a minha esposa.
Acompanho-a pelo espírito solidário que nos une há anos. Quando não
há expectativa de sofrimentos, como hoje, limito-me apenas em
deixá-la no consultório e descer para dar uma volta. Ainda mais que,
em nome da higiene, só podemos lá permanecer se colocarmos uns
protetores no sapato para minimizar a possibilidade de trazermos
bactérias da rua. Parece besteira, mas sinto uma sensação de UTI no
ar e, com as lembranças que delas ainda me restam bem vivas, procuro
esquecer-me das minhas angustiantes permanências por lá.
Morador que sou de Copacabana, uma voltinha por Ipanema
sempre me proporciona um prazer renovado. Rever galerias, bares,
livrarias, esquinas famosas... Nesta uma hora disponível de lazer
procuro saboreá-la ao meu modo preferido – leitura e chope! Tão logo
considerei cumprida a parte da caminhada, resolvi procurar pelo meu
querido Mário Quintana na primeira livraria que se apresentou. Lá
estava ele, simpático, dividido entre vários livros. Como o dinheiro
anda meio escasso, abracei-o na forma de um pocket book. Sei que ele
preferiria que eu evitasse este estrangeirismo e dissesse
simplesmente livro de bolso. Tudo bem, concordo plenamente! O
importante agora era encontrar um lugar onde pudéssemos conversar
distraidamente sobre as delícias dos seus poemas.
Minto ao dizer que teria de procurar um local, pois na
realidade eu já o conheço de outras vindas à dentista. Com uma
vantagem, fica embaixo do prédio do seu consultório e de frente para
a Praça General Osório onde poderei tomar um chope em homenagem ao
nosso herói, evidentemente se não passar uma daquelas esculturais
Garotas de Ipanema que justifique a mudança do foco da homenagem
(risos)... O Belmonte era apenas um bar, mas com a febre das novas
denominações, tornou-se o Boteco Belmonte, um dos redutos da boemia
de Ipanema. Para os curiosos, recomendo procurar por sua página na
Internet. Já que não deverei me demorar muito, minha preferência é
por sentar-me nas cadeiras altas e próximas ao balcão. Reproduz um
clima meio saudosista dos pubs europeus...
Claro, pedido o chope, incontinenti comecei a conversar com
o Quintana. Conversa agradável, seus trejeitos característicos, sua
gauchesca fala acentuada, suas tiradas geniais, tanto que, em poucos
instantes, já estava rendido pelo seu encanto. A conversa seguia tão
profunda que quase não me dei conta de que o personagem desta
crônica acabava de chegar. Precedido por um falar mais alto de
mulher, ali chegava ele...
Cabeça branca, rosto corado, andar bamboleante, o casal me
parecia português. A bem da verdade, devo dizer que ele já vinha
meio alto, provavelmente de outro bar... Agora falando bem mais
alto, a mulher lhe dizia em tom de ultimato que lhe faria esta
concessão apenas se fosse o último chope. Mas, decidida, afirmou ela
que não entraria. Ficaria de fora aguardando a sua saída. Como não
simpatizar de imediato com o velhinho? Acompanhei-o com carinho em
sua curta caminhada até a primeira mesa bem próxima à entrada. O
pequeno degrau de acesso, para ele, assumira proporções bem maiores.
No ilusionismo da vida, às vezes um simples degrau nos anula a
realidade. O primeiro gole do combinado último chope desceu com uma
leve careta, certamente até sem o sabor natural tal o adiantado
estado alcoólico que ele aparentava estar. E ali ficou diante de nós
a patética cena. A senhora impaciente, com olhar crítico do lado de
fora. O velhinho sentado, com os olhos fechados, alisando levemente
a borda do copo de chope como a querer ter a certeza de que dali ele
não seria retirado. Eu, com o Quintana entreaberto, no inevitável
exercício de tentar compreender as reações humanas... Nestas horas,
o elementar questionamento filosófico dos porquês, nos desafia.
Lembrei-me logo de Paulo Francis: - Bebo para tornar as outras
pessoas mais interessantes.
Finalmente minha esposa chegou. Para nossa satisfação, o
tratamento de hoje não a impediria de me acompanhar em mais um
chope. Rendemo-nos ao justo e irresistível desejo de uns bolinhos de
bacalhau. Em rápidas palavras comento com ela a inusitada cena que
insiste em ficar e, solidários, dividimos por um bom tempo o nosso
prazer com tolerantes sorrisos ao simpático personagem. A senhora,
porém, no encontro dos nossos olhares, fazia um sinal de reprovação
com a cabeça como a dizer:
- O quê eu faço com ele?
Decorrido mais algum tempo, tínhamos que retornar a casa. A
cena em quase nada mudara. Apenas o senhor, agora definitivamente
vencido, dormitava e a senhora, também cansada, resolvera sentar-se
ao seu lado... Ao pedir a conta, solicitei ao garçom que nela
incluísse o chope do meu personagem. Com delicadeza sorri para a
senhora e disse que o chope estava pago. Deve ter me achado outro
velho meio maluco, mas retribuiu-me o sorriso...
Já no táxi, abracei minha esposa e seguimos com pouco
falar. Enquanto o carro percorria a orla da praia, admirando o mar,
eu pensava em silêncio:
- Quando e como será o meu último chopinho...
Ouvi Quintana ainda me dizer baixinho:
- Amigo, a vida é breve e o amor mais breve ainda...