Uma semana no Rio de Janeiro para exames de rotina e tratamento médico.
Sábado às 21:30h, movido
por incontida saudade, chamo um táxi com a intenção de rever o
Cabaré do Bueno, na Lapa. Indago ao motorista se ainda existe e se
ele conhece aquela antiga casa de danças. Ele aciona o taxímetro e diz que sim.
Sentado ao lado do “chaufer”,
durante o percurso, conto-lhe remi-niscências de minha juventude,
quando frequentador contumaz da-quele cabaré. Adiantou-me que eu
iria sentir uma grande diferen-ça. Depois da morte do velho Bueno,
um dos filhos tomara a frente da direção do estabelecimento,
sofisticando a frequência, com consumação mínima elevada e quem não
estivesse acompanhado e quisesse dançar, teria que pagar por cada dança às táxis-girl.
Pensei que, para voltar ao
passado algo deveria custar-me por tal regresso, inda mais sendo ele
supostamente prazeroso. Chegado ao destino, dei uma olhada na
fachada do velho prédio, agora tomba-do pelo patrimônio histórico
nacional. Exteriormente pareceu-me bem conservado através dos anos,
mantendo inalteradas suas for-mas arquitetônicas. Paguei a corrida,
acrescida de uma modesta gorjeta, não merecedora de um agradecimento.
Na entrada estava o
porteiro trajado com um espalhafatoso farda-mento e quepe puxando
para um desmaiado vermelho e luvas pre-tas. Cumprimentei-o e fui
advertido sobre a falta da gravata que estava no bolso do meu
paletó. Coloquei-a e subi a escada que me conduzia ao sobrado.
Coração palpitando, querendo saltar-me do peito. O bolero tocado já
chegava-me aos ouvidos e, a cada degrau galgado, pensava eu estar indo ao encontro do passado...
Uma romântica melancolia
me aguardava à chegada. À média luz, um “crooner” arranhava La
Barca, acompanhado por um violão, piano e bongô. Lembrei-me do
inigualável, insuperável Luis Miguel. Homens de Preto agora chamados
de seguranças (antigamente “le-ões de chácara”), mesas com castiçais
e toalhas de linho assusta-ram-me, quanto ao custo e benefício de
minha permanência no local. O Cabaré parecia ter se transformado numa boate.
Desestimulado, sem
conhecer ninguém, sentindo-me um estranho no próprio ninho, procurei
saber quem era o filho do Bueno e um garçom indicou-me um homem de
meia-idade. Dirigi-me a ele e em poucas palavras contei-lhe de
minhas reminiscências. Perguntei-lhe se chegou a conhecer Dolores,
minha predileta dançarina e ele dis-se-me que ela ainda trabalhava
na casa, mas agora era encarrega-da da cozinha.
Senti um nó na garganta e
fui assolado por um vendaval de emo-ções conflitantes: alegria,
tristeza, frustração, ansiedade e... com os olhos rasos d’água
perguntei-lhe se poderia falar com ela. Ele disse-me que não era
permitida a entrada de estranhos na cozinha mas que, no meu caso,
abriria um precedente, desde que não me demorasse. Fez sinal para um
dos seguranças que me olhava atenta e vigilantemente, ordenando-lhe que me acompanhasse até Dolo-res.
Nos fundos do
estabelecimento passei por uma porta vai-vem e adentrei uma espaçosa
e movimentada cozinha. Haviam seis em-pregadas e procurei adivinhar
qual delas seria Dolores. O segurança que me acompanhava chamou-a,
com voz retumbante e apontando para mim falou em tom de brincadeira:
__ Este freguês quer fazer uma reclamação sobre a comida.
Veio em minha direção uma
senhora setentona, acima do peso ide-al, avental encardido e touca
branca na cabeça. Enxugando as mãos, perguntou-me o que havia de
errado, obviamente sem reco-nhecer-me. Afinal passaram-se mais de
cinquenta anos desde que nos vimos pela última vez. Era um milagre aquele reencontro!
Com algum esforço, premido pela emoção, consegui balbuciar:
__ Dolores, minha preta, querida, sou eu: Ary, seu par constante, lembra?
Ela abriu a boca parecendo
incrédula e nada disse entre lábios trê-mulos. Arrancou a touca e o
avental e soluçando abraçou-me com tanta força que quase não
consegui respirar. Ambos choramos si-lentes. Assim ficamos por quase um minuto. Ela foi a primeira a conseguir falar.
__ Você não me avisou que vinha. Veja como estou!
__ Não menos bonita que
antigamente! Nossa beleza agora é mais pura, é interior, aquela que
ficará para sempre até o final de nossa estrada! Não precisamos mais
nos preocupar com a aparência ex-terna. Esse tempo se foi, passou!
__ Como você conseguiu
continuar com o mesmo corpo, apenas um pouco mais baixo e lindos cabelos brancos?
__Estar mais baixo devo à
tal Lei da Gravidade e os cabelos bran-cos à longevidade alcançada.
O segurança afastou-se de
nós e foi “beliscar” algumas guloseimas, aproveitando o nosso tête-à-tête.
__ Você veio dançar?
__ Não! Vim mais, na remota esperança de te rever!
__ Se você resolver
dançar, dance com a Lourdinha. É a única que é honesta. As outras picotam o cartão, além das vezes que dan-çam. Cuidado!
__ Dolores, eu vou me
embora. Não vou ficar. Vim matar as sauda-des, mas não encontrei o
que aqui deixei. Apenas você me consola, razão principal da minha
vinda! Um prêmio a este meu velho cora-ção, que agora bate mais acelerado em meu peito.
__ Obrigado, querido. Toda
madrugada, quando termina o traba-lho, meu neto mais velho vem me buscar.
__ Neto?! Você já é vovó?
__Há muito tempo... tenho
três. Às vezes, em casa, danço com eles, mas nenhum deles vai
conseguir superar nós dois. Aqueles ve-lhos tempos em que abriam
espaço no salão para evoluirmos nossos tangos e boleros...
__Eu tenho três netos e uma neta. Também sou vovô...
Pigarreando e mastigando
um pastel, o segurança avisou-nos que o horário da visita acabara e caminhou para fora da cozinha.
A sós, apenas olhando-nos,
falamos tanto com os olhos que impos-sível seria dizê-lo com
palavras. Nos abraçamos, sabendo que aquela seria a nossa derradeira
despedida. Nada dissemos, apenas choramos... o último toque foi um lento separar de nossas mãos.
Agradeci ao “Bueninho” a
concessão, atravessei rapidamente o sa-lão, com os olhos ocultos
pelos óculos e desci a escada arrancando a gravata que me incomodava o pescoço e entreguei-a ao “porteiro vermelhão”.
__Presente meu! Graças a
Deus não necessito mais disso. Use-a em ocasiões especiais. É pura seda italiana!
Peguei o primeiro táxi da
fila, sentando-me no banco de trás, sem ânimo para conversar. Dei o
endereço ao motorista e ele, de ime-diato acionou a bandeirola 2 do
taxímetro. Eram quase 23:00h. Triste final de mais um dia. Reclinei
minha cabeça no encosto, fe-chei os olhos e comecei a perguntar-me:
“Por que o tempo é tão implacável? O que fiz de errado para merecer
tamanho padecer? Onde enterraram o cabaré que, pedindo apenas uma
cerveja e al-guns tira-gostos dançávamos a noite toda, madrugada
adentro?” Quantas vezes a rádio patrulha deu batidas nos
frequentadores, pedindo a carteira trabalhista ou examinando as
palmas das mãos da gente. Aquele que tivesse as mãos calejadas era
dispensado de documentação. Eu tinha as minhas bem calejadas pelos
exercícios que fazia nas academias de musculação. Nada a ver com meu tra-balho de escritório. Jamais fui levado no camburão, mesmo sem mostrar documentos, graças aos benditos calos.
Pobre da minha querida
preta Dolores que não mais usa seus visto-sos vestidos, que
emolduravam o seu escultural corpo. De certa forma, no apagar das
luzes de seu apogeu, conseguiu manter-se na vida noturna e continua
forte, arrostando as agruras que o presen-te lhe oferece. Chorei, solucei, cochilei...
__Já chegamos, senhor!
Olhei em volta e, de fato, estava de volta à minha rotineira reali-dade.
Como ele deu-se ao
trabalho de abrir a porta pra mim, dei-lhe uma gorjeta mais ou menos
boa, ganhando eu, em troca, um gentil agradecimento. Tresnoitado,
envolto em melancólico saudosismo, custei a dormir e perdi a hora do
café da manhã na “espelunca duas estrelas” em que estava hospedado.
Levantei-me sonolento, para vivenciar o marasmo da mesmice que estava à minha espera! A rotina de meu imutável porvir!
Poema feito por mim em janeiro de 2010
Tango
Em passos largos e ritmados Exibimos, eu e minha dama, Com grande maestria e animados,
O tango no salão e nossa fama
Admirados como exímios dançarinos,
Abriam espaço para mostrarmos nossa arte.
Rivalizávamos até com os argentinos.
Éramos melhores, modéstia à parte.
Ao terminarmos, ligeiramente separados,
Sempre éramos efusivamente ovacionados
Só não podíamos finalizar abraçados.
O segredo estava em nossos sinais trocados.
Passados anos, invade-me a saudade Por onde andarás agora, Dolores?
Sei que já não temos mais idade. Mas, dançando, aplacaríamos nossas
dores!
Ary Franco
Fundo Musical: La Cumparsita - Los Indios Tabajaras
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