Como conheci Dolores

Recebi em 05/12/2012


1952 – Acabara de prestar serviço militar, dando baixa como 3º sargento da reserva. Dono do mundo, na faixa dos meus vinte anos de idade, sabia tudo, ninguém sabia nada.

Reapresentei-me de imediato na Empresa em que trabalhava, des-de os meus 16 anos incompletos, como datilógrafo, estudando às noites. Amante da dança, frequentador de bailes nas madrugadas de sextas-feiras, sábados e vésperas de feriados, considerado exímio dançarino de boleros, tangos e valsas. Tive a ajuda de um professor que gostava muito de mim. Seus trejeitos efeminados, jamais abalaram minha simpatia, respeito e gratidão que tinha por ele. Obrigado mestre Homero, descanse em paz!

Num dos longínquos sábados deste meu saudoso passado, Amâncio, um de meus amigos, sugeriu quebrarmos a rotina dos bailes do Clu-be do bairro e “darmos um pulo” no Cabaré do Bueno na Lapa. Lá era “baratinho” e as meninas dançavam profissionalmente, pagas pela casa. Gastaríamos apenas com as cervejas e tira-gostos.

Topei e fui a caráter, com sapatos pretos (cromo alemão), calça “boquinha”, terno preto, gravata cinza clara, cravo na lapela e cabelos penteados e esticados a custo de muita Glostora. Subi as escadas e aboletei-me em uma das mesas afastadas do tablado de danças. Amâncio, mais afoito, já dançava sem preocupar-se na escolha da dama.

Enquanto bebericava uma Brahma e saboreava uma empadinha de galinha, observava as dançarinas evoluindo no salão. Chamou-me a atenção a habilidade de uma menina orbitando minha idade. Num breve descanso dos músicos, aproximei-me dela e convidei-a para dançarmos a próxima música. Ela aceitou e, por sorte minha, tocou um tango.

Levitamos em passos largos e notei uma mútua satisfação de nós ambos, nascendo automaticamente uma empatia que maior afini-dade despertou em nós. Não paramos mais e entramos madrugada adentro como par constante. Era uma jovem e linda mulher da mesma brava raça do nosso heroico Ministro Joaquim Barbosa, com belos dentes alvíssimos, deixando transparecer em seu sorriso um sensual atrativo, além de um corpo exuberante.

Perguntei como rotineiramente voltava ela para casa. Disse-me que tinha um táxi certo que, nas madrugadas, por volta das 4:00h vinha buscá-la e a levava para onde morava com a mãe inválida de-pendente de uma cadeira de rodas e de acompanhante. Pai faleci-do e sem irmãos, ela era o sustento da casa. A seu modo, para mim, era uma brava lutadora fazendo valer suas aptidões!

Fiquei frequentador assíduo e semanas após, nasceu entre nós algo mais que uma simples amizade. Encontrávamo-nos durante as tar-des dos finais de semana, frequentava a casa dela e até, às vezes, por lá dormia e tinha ternos meus em seu guarda-roupas.

O velho Bueno não gostava muito de que ela dançasse apenas co-migo e para cativá-lo, passei a levar uma galera comigo que junta-va três mesas, fazendo uma boa despesa no final das contas. Quan-do dançávamos, pares circundantes nos olhavam com admiração e até abriam um espaço maior para evolução de nossos passos. Oh! tempo bom que não voltará jamais! Recordar-te é o que me resta!

Em nossos passeios, Dolores sempre se vestia com esmerado apuro. Gostávamos muito de assistir a filmes e nunca entrávamos no meio das seções. Ficávamos na sala de espera dos cinemas aguardando o início do filme. Naquele tempo o preconceito racial era hediondo e até mesmo agressivo. Éramos alvo das atenções; todos nos olhavam com ares reprovadores e nos abraçávamos mais por isso. Só era permitido aos homens entrarem nos cinemas das cidades trajando terno. Íamos sempre no Metro Passeio, Cine Palácio, Vitória ou Pathé na Cinelândia, centro do Rio de Janeiro.

Na saída do cinema, invariavelmente fazíamos um lanche na Sorve-teria Americana e, novamente, todos nos olhavam. Sentia uma revolta incontida dentro de mim e, por vezes, encarava aquele que mais ousada e acintosamente nos olhava. Maldito preconceito!

Nosso relacionamento foi ficando difícil quando ela passou a me querer todos os dias, que abandonasse o meu emprego, transfor-mando-me num gigolô. Passando por cima de detalhes não muito importantes, pouco faltando para um ano de nosso romance, resol-emos terminar nosso namoro, derrotados pela cruel impossibilidade e total incompatibilidade de seguirmos em frente. Éramos dois contra o Mundo e acabamos cedendo. Naquela época seria uma luta inglória...

Ary Franco



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