Antes de começar a ler esta crônica, recomendo relembrar outras
duas por mim escritas: Como conheci Dolores (3/12/2012) e Triste Retorno (6/12/2012)
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Num desses
recentes ontens, resolvi fazer nova surpresa à mi-nha querida amiga
Dolores. Vestido a caráter, com o indefectível cravo branco na
lapela do paletó, sem esquecer a gravata, voltei ao Cabaré do
Bueno.
Se pudesse, iria direto à
cozinha onde ela deveria estar mas isso não me seria permitido,
então dirigi-me ao “Bueninho”. Um pouco afastado, esperei que ele
terminasse uma conversa e dei-lhe o meu boa noite. Ele lembrou-se de
minha última visita e convidou-me a sentar ao seu lado. Após um
breve silêncio, pedi-lhe autorização para dar “um pulinho” na
cozinha e falar rapidamente com Dolores.
Sem me olhar, com a cabeça
baixa, respondeu-me com voz pe- sarosa:
__ Ela nos deixou...
__ Brigaram ou se
aposentou? Indaguei apreensivo, mas em tom de brincadeira.
Ainda olhando para o chão
falou-me, com triste ênfase:
__ Infelizmente, ela se
foi para sempre, de nós todos...
__ Dolores morreu? Como? O
que aconteceu? Minhas indagações saíram em sussurros quase
inaudíveis.
__ Há três meses ela subiu
as escadas para mais um dia de tra-balho, mas logo sentou-se
ofegante. Começamos a abaná-la mas sua pele começou a empalidecer e
parou de respirar. Telefonamos imediatamente solicitando uma
ambulância mas nada puderam fa-zer. O corpo dela foi levado num
rabecão. Foi diagnosticado um infarto agudo do miocárdio. Nesse dia
e no seguinte, não abrimos as portas para que todos pudéssemos
comparecer ao funeral. Seus netos disseram-me, lá no cemitério que
ela não se sentia bem, muito cansada quando saiu de casa, mas não
queria faltar ao tra-balho.
__ Dolores realizou o
sonho dela. Cumpriu com o que sempre me dizia: que jamais deixaria
este Cabaré. Só morta! Ironia do destino! Subiu as escadas sabendo
que isso custar-lhe-ia a vida... e faleceu onde queria.
Não consegui segurar meu
pranto e sufoquei meus soluços e ocultei meu pranto com o lenço.
Bueninho colocou sua mão em meu ombro e, tentando consolar-me,
sugeriu-me:
__ Acho que se dançasses
te faria bem e Dolores lá de cima iria te aplaudir. Não precisarás
comprar cartão para picotar. É uma oferta da casa – OK?
Dançar... coisa que
passava longe de minha cabeça num mo-mento triste daquele, mas
meditando o que Bueninho me disse, achei que Dolores realmente
ficaria feliz, já que o faria em sua homenagem.
__ Aceito Bueninho. Vou
lavar o rosto, enxugar as lágrimas e volto já.
Fui ao toalete
recompor-me, sob um misto de tristeza e revolta. Voltei para o salão
e me dirigi às taxis-girls.
__ Qual de vocês dança
tango apache?
Eram cinco e quatro
olharam para uma que levantou-se per-guntando-me pelo cartão. Nisso,
antes que eu respondesse, Bue-ninho fez um sinal para ela com o
polegar para cima e ela sorriu para mim. Notei que ela não estava
acreditando muito naquele homem de cabelos brancos e que,
condescendentemente, me faria apenas o favor de satisfazer um desejo
do qual eu não seria capaz de realizar.
__ Qual o seu nome?
Perguntei-lhe
__ Flor de Liz.
__ Não quero o seu nome
artístico, quero saber o real.
__ Alice.
__ Você conheceu Dolores?
__ Sim! Ela era chefe da
cozinha.
__ Não, você não conheceu
Dolores, refiro-me àquela que já era uma exímia dançarina, antes de
você nascer.
__ Ah! Sim! Ela me contava
que antigamente dançava muito bem e falava muito num parceiro
predileto que se chamava Ary. Qual é o seu nome?
__ Paulo, às suas ordens!
Solicitei licença por um
minuto e pedi à orquestra que tocasse um tango, de preferência “Por
Una Cabeza”.
Fui com Alice para o
tablado que ainda estava vazio e quando ela sentiu meu pegar em sua
cintura, mostrou-se surpresa. Pergun-tei-lhe se ela ficaria zangada
se eu a chamasse de Dolores. Ela consentiu e começamos os primeiros
passos. Dancei como nunca e meu par correspondeu eximiamente a
todos, até largá-la no chão e depois ajudá-la a levantar-se com o
auxílio de minha mão ela o fez muito bem, voltava aos meus braços
após rechaços por mim simulados. Terminamos em um falso beijo, boca
a boca. Foi um tango apache tão bem dançado que fomos aplaudidos ao
terminar. Cedemos aos pedidos de bis e novamente a orquestra tocou
o mesmo tango. Nessa segunda vez nossa performance foi melhor ainda
pelo entrosamento adquirido na primeira dança, mas, por faltar-me
aquele fôlego que a juventude implacavelmente guardou com ela, tive
que parar.
Desconfiada, Alice tornou
a perguntar-me se meu nome era mesmo Paulo.
Apenas sorri e agradeci à
Flor de Liz pela dança, beijei-lhe a mão e ofereci-lhe o cravo que
estava em minha lapela.
__ Aceite este cravo como
se fosse a própria Dolores – OK?
Voltei ao banheiro para
desabar em prantos. Bueninho foi até lá me parabenizar e ofereceu a
casa para qualquer dia que quises-se eu voltar. As portas sempre
estariam abertas para mim. Mas ele sabia que aquela tinha sido minha
última vez.
__ Ary, Flor de Liz veio
perguntar-me seu nome e eu disse, fiz mal?
__ Depois que dançamos,
ficou difícil enganá-la. Não fez mal algum, obrigado!
Alice já dançava em meio a
outros pares e lançou-me um sig-nificativo sorriso. Na descida da
escada senti-me como que acom-panhado por Dolores me conduzindo até
a rua. Do táxi, dei um derradeiro e patético adeus ao Cabaré do
Bueno.
Ary Franco
Fundo Musical: Por una cabeza - Enzo Phirpo e sua Orquestra
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