Ontem de manhã vieram inusitadamente me apanhar sem eu saber pra quê. Além das visitas constantes, costumavam buscar-me para aniversários, páscoa, natal, passagem de ano e outras datas comemorativas e festivas. Deram-me banho mais cedo, colocaram-me fralda e me perfumaram como de costume, desjejum na boca e me vestiram com a roupa mais nova. Delicadamente colocaram-me na minha cadeira de rodas e lá fui eu conduzido para destino por mim ainda ignorado. À distância, vi um homem idoso me esperando no portão da Casa de Repouso, onde eu sou hóspede; beijou-me na testa cari-nhosamente, pedindo-me a benção. Nada proferi, pois já de algum tempo deixei de falar, mas em pensamento respondi-lhe: Deus te abençoe! Ainda lúcido, minha mente funciona com sentimentos va-riadamente intercalados. Sinto quase todos, porém não exterior-mente manifestados: alegria, tristeza, emoção, decepção, surpre-sa, piedade, desagrado, doces e amargas lembranças de um longín-quo passado... Meu rosto sulcado por rugas penosamente adquiri-das através de 102 anos, esqueceu-se de como se sorri... Chegado mais próximo senti a alegria de reconhecer meu filho mais velho, acompanhado de minha neta, ele com cabelos imaculadamente brancos e os dela grisalhos. A curiosidade desper-tada pelo inusitado passeio ainda permanecia em minha mente. Chegados ao carro, facilitados pelo meu pouco peso, fui cuidadosa-mente sentado no banco traseiro com o cinto de segurança e cari-nhosamente aconchegado pela minha neta. Ao volante reconheci outro neto que beijou-me no rosto antes de iniciarmos a misteriosa viagem. Minha cadeira dobrável foi colocada no porta-malas. Durante o percurso todos falavam comigo e eu os escutava atentamente. Disseram-me que era o Dia dos Pais e eu seria a figu-ra principal da festiva data. Curioso... quando se alcança uma ida-de avançada, deixamos de ser convidados e passamos a ser com-pulsórios participantes... intimados, sem opção! Em lá chegando fui festivamente recepcionado, abraçado, beijado, disputadíssimo, quase arrancado da minha confortável cadeira de rodas. Fotos e mais fotos foram tiradas, figurando eu em todas como personagem principal. O que mais me emocionou, mas lágrimas não rolaram de meus olhos secos, apenas umectaram meu velho e cansado coração: colocaram em meu colo um meigo anjinho para mais uma foto e ele, virando a cabecinha para cima, olhou-me com os olhos mais lindos que jamais me olharam e disse-me baixinho: “tatá...” Era o diminutivo de tataravô, o mais alto grau de parentes-co que se possa alcançar. Eu fazia jus àquele jubiloso título, já que fui pai aos vinte e dois anos. Esse foi o mo-mento marcante da “minha” festa, guardado no cerne do meu emocional. Das mais de sessenta pessoas presentes, de poucas me lem-brava, mas sabia que eram meus rebentos ou parentes afins, a per-petuação de meu nome através de um duradouro, eterno porvir. Era eu, apesar de minha fragilidade física, o tronco daquela arvore genealógica, motivo de meu ufanoso orgulho. Quão generoso Deus me foi... e ainda o é! Às 18:00h resolveram levar-me de volta ao meu ninho, o local mais apropriado para passar o restante de meu caminhar aqui por baixo. Levava comigo um gostoso cansaço e a dúvida de se mais uma vez haveria tempo de virem buscar-me para outro evento. Se eu lograria esperar mais algum tempo por um novo “convite”. Ary Franco |