Cinco horas da manhã: Assim que eu suspendo as portas de aço do bar,
um tímido raio de sol vem anunciar que teremos um belo dia!
Acordo meus dois filhos: é hora de ir buscar o pão na padaria. Jorge
tem 14 anos e Eduardo tem 12. Acordam de má-vontade, sonolentos.
Nunca gostaram do ritual de todos os dias, quer chova ou faça sol. A
padaria fica distante e voltar com o cesto cheio de pães, às vezes
debaixo de chuva, deixa os meninos de muito mau humor.
O caminhão entrega as bandejas contendo os sacos plásticos com
leite! Arrumo o cesto com os pães sobre o balcão, pois logo os
fregueses vão chegar apressados.
Maria, minha esposa, põe a mesa para a refeição matinal.
No ar, há um aroma gostoso de café forte!
Enquanto os meninos se aprontam para o colégio, Maria co-meça a sua
lida diária, cuidando da casa e da pequenina Daniela, que logo irá
brincar com as amiguinhas Rose e Andréia!
Os pardais nas amendoeiras fazem imensa algazarra, anuncian-do o
novo dia!
Descendo a rua, começam a chegar os primeiros fregueses. Pão, leite,
pó de café, e outros artigos para o café da manhã, são rapidamente
vendidos.
E chega o seu Jorge: - Dá um café aí, seu João! – É assim que ele
pede a primeira cachaça do dia! E começa a minha rotina. Chega o
caminhão de cerveja, descarregam as caixas. E vão chegando outras
mercadorias: biscoitos, massas, doces, enlatados e muitas outras.
Bar de subúrbio vende de tudo: de cachaça a esparadrapo!
Começo a varrer as folhas das amendoeiras que o vento da noite
espalhou pela rua. Todos os dias, as duas amendoeiras na calçada do
bar, derramam suas folhas como se quisessem ofertar aos passantes um
tapete ouro-avermelhado! Não sei o que seria de mim sem suas sombras
amigas a me protegerem do sol que bate de frente, diariamente, à
tarde.
Seu Paulo chega gritando: “- Machadinha!!!!” – É assim que ele trata
todo mundo! É um aposentado que vive só e gosta de ajudar as
pessoas. Quando alguém joga fora algum móvel (cama, sofá, fogão ou
outros utensílios domésticos), seu Paulo logo dá um jeito de levar
para uma favela próxima, onde as coisas vão servir para alguém! É um
homem muito inteligente e até já escreveu um livro! Mas é meio
maluco, também!
Crianças chegam para comprar doces e refrigerantes. Os vizi-nhos
passam em direção à estação de trem na ida para o trabalho.
As crianças chegam para a aula na escolinha em frente. Dona Ângela,
uma pernambucana educada e prestativa, começa a varrer e lavar a sua
calçada, resmungando contra as folhas das amendo-eiras! O caminhão
da limpeza pública passa recolhendo os sacos de lixo das calçadas.
Meio-dia: um cheiro gostoso de comida espalha-se pelo ar!
O rádio transmite as últimas notícias na “Patrulha da Cidade”.
O sargento Breno, um gaúcho bem humorado, vai se chegando: -
“Pendura uma caninha aí, seu João”! - E conta os “causos” do Rio
Grande do Sul, sua terra, e recita versos em castelhano, que só ele
entende, enquanto as doses de cachaça vão se sucedendo.
Os passarinhos retornam aos seus ninhos nas amendoeiras, anunciando
a chegada da noite. Ao longe, ouve-se o som de uma “Ave Maria” no
rádio!
O “Baiano” chega, perguntando pela namorada: uma morena baixinha que
adora tomar “umas e outras”. “Baiano” possui uma linda voz, e quando
está inspirado, canta a noite toda as músicas sertanejas da moda.
E vem chegando a figura mais pitoresca do bairro: “Jarrão”!
“Jarrão” é um cara querido por todo mundo. Sempre a disposi-ção dos
amigos para capinar um quintal, levantar uma laje, carre-gar móveis,
enfim, é “pau pra toda obra”. Muito alto, com uma voz cavernosa e
péssima dicção, quase não se entende o que ele fala.
Alguns amigos dizem que ele deveria ser “dublado ou legenda-do”.
“Jarrão” tem três amores: a cerveja, o Flamengo e o rei Ro-berto
Carlos (não necessariamente nessa ordem).
Ele pede uma “loura gelada”, e começa falando mal do gover-no.
Depois, xinga “essa cambada” de políticos corruptos, reclama dos
preços, enquanto toma uma cerveja atrás da outra, até que a língua
enrola de vez, e ninguém mais entende o que ele diz.
Os sedentos de uma cachaça, de uma cerveja ou de um papo, vão se
chegando.
E começa a terapia de balcão: Os papos são sempre os mes-mos: falam
mal do patrão, do salário de fome, da vida. Depois o assunto é
mulher: - Viu a nova moradora do 204? Boa pra burro! - diz o Marcão.
E a mulher do Raimundo do açougue? Que mulher! - diz o Beti-nho -
Aquilo é que é mulher!
É assim que a mamãe “ta” querendo uma nora! - E a gargalha-da é
geral!
Aí, vem o futebol: É uma balburdia total, ninguém se entende, todos
falam ao mesmo tempo.
- O Vasco é o melhor time do Brasil! – diz o seu “Manel” da padaria.
Nesse momento, ”Jarrão”, que parecia dormir debruçado sobre o
balcão, acorda e grita bem alto: - Mengooooo!!!
- A resposta é um coro de vaias dos torcedores dos outros times.
Flamenguistas ficam vermelhos! Vascaínos xingam! Tricolo-res
raivosos trocam ofensas com botafoguenses! E quando se pensa que a
confusão vai terminar em pancadaria, aí vem a paz... São todos
amigos!
A essa altura, a bebida já embota qualquer raciocínio, mas nin-guém
pensa em ir embora. Desce a “saideira” aí, seu João - Grita o
Paulão.
E eu sirvo a décima “saideira”.
O Luizão manda descer uma lata de sardinha, e com rodelas de pão,
reparte com os amigos de copo. Aí vem a tal da “purrinha”:
Mãos fechadas, murros no balcão: - Dois! - grita um deles. – Quatro!
- grita outro...
Berros! Gritaria! Ninguém quer perder! E tome cerveja! E tome
cachaça!
As horas passam, e a gritaria vai se acalmando. O rádio canta as
músicas da moda.
Há cheiro da bebida e cigarro no ar.
É hora da “sinuca”: Formam-se os pares, e só se ouve o “ploc” do
bater dos tacos nas bolas, acompanhado de um ou outro pala-vrão. E
vão tomando cervejas e caipirinhas! E partem para a “me-lhor de
três!”
As horas passam e vem a dor de amor... A dor de “cotovelo”! O “Zeca”
segura o violão e acompanha os amigos, que cantam suas mágoas nas
canções de Nelson Gonçalves, Silvio Caldas e Dorival Caymmi.
Cabeças pendentes, olhos quase fechando, pernas trôpegas e as vozes
arrastadas, vão saindo um a um, como se houvessem com-binado.
- Até amanhã, seu João! – Autores tristes de suas próprias
his-tórias.
A lua é a testemunha do final desta noite.
A volta ao presente traz-me a saudade... Doces recordações!
Sinto falta das gargalhadas dos fregueses, do tilintar dos co-pos...
Sinto falta da alegria que reinava naqueles dias! Sinto falta do meu
bar! Do meu subúrbio! Trinta anos se passaram...
Como eu gostaria de ouvir de novo os passarinhos nas amendo-eiras!