Janice era uma mulher incrível.
Nascida em 1946, participou ativamente das mudanças no Bra-sil.
Foi líder estudantil na época da ditadura, foi presa com outros
estudantes, mas, não desistiu da luta. Quando saiu da prisão,
re-solveu que a sua arma seria a caneta.
Sendo contra qualquer tipo de violência, não quis participar de
grupos armados que lutavam pela liberdade do país.
Formou-se em jornalismo com louvor e participou ativamente na
reconstrução da democracia do Brasil, escrevendo para revistas e
jornais, denunciando os abusos da repressão, a censura e a tortu-ra.
Quando finalmente, a democracia foi restabelecida, fundou uma O.N.G.
em defesa dos direitos da mulher. Era uma líder, res-peitada pelo
povo e admirada pelos intelectuais que ajudaram na reconstrução
deste país.
Casou e teve quatro filhos: dois meninos e duas meninas. Con-tinuou
a participar da vida do país, enquanto se dividia entre o ma-rido e
os filhos.
Os filhos cresceram e vieram os netos. Era completamente fe-liz:
tinha um lar, uma família maravilhosa, dois livros publicados e o
respeito de todos que a conheciam.
Até que veio a doença. Impiedosa... Inexorável.
Subitamente, viu-se presa ao leito e os movimentos quase que
totalmente paralisados.
Não conseguia mais falar. Seus dedos e mãos ficaram tortos, como
raízes de uma árvore.
As pernas perderam toda a força e já não conseguia mais an-dar.
Dependia completamente dos filhos e dos netos para quase tudo:
comer, tomar banho, deitar ou sentar na cadeira de rodas. Todas as
suas ilusões foram enterradas junto com seus sonhos.
Mas sua maior tristeza era não poder se comunicar. Não conse-guia
fazer-se entender.
Ficava dias e dias no quarto. Na cama ou na cadeira de rodas.
Quando chegava uma visita na casa, fechavam a porta do quar-to para
que não pudessem vê-la, talvez para evitar que ficasse constrangida.
Mas isso a magoava muito, pois parecia que tinham vergonha do seu
estado. Não era culpada por estar doente.
A doença progredia, trazendo mais dor e mais dificuldades. Sentia-se
perdida, num mundo só seu: intransponível e solitário.
Todos os seus movimentos estavam caoticamente em desacor-do, mas,
ironicamente, seu cérebro, sua visão e audição funciona-vam
perfeitamente.
Podia perceber facilmente, quando evitavam falar certas coi-sas em
sua presença, podia sentir quando mentiam e podia notar com muita
tristeza que sentiam vergonha de mostrá-la a outras pessoas.
Não que fosse maltratada, isso não! Estava sempre limpa, chei-rosa,
sempre bem cuidada. Mas estava reclusa. Prisioneira. E seus próprios
filhos, eram seus “carinhosos carcereiros.” Sonhava em poder ir à
rua, passear numa praça, ver o mar, as árvores, crianças
brincando... Queria ver cães e gatos, o movimento dos carros, o céu,
sentir o calor do sol e a brisa no rosto. Mesmo numa cadeira de
rodas.
Mas não tinha como pedir. Não conseguia fazer-se entender. E sentia
que havia um acordo tácito, para que só a família pudesse vê-la,
para que não a tirassem do quarto. Talvez não quisessem in-comodá-la,
mas o fato é que sentia um desespero crescente, uma solidão
infinita.
Começou a viver de recordações.
Dormia quase todo o tempo, sonhando com os lugares que co-nhecera,
com o mar, com pessoas amigas com quem convivera, com os livros que
lera. Sonhava com seus filhos pequenos brin-cando na pracinha ao sol
da manhã, com a alegria que sentira com o nascimento dos netos...
Sonhava mesmo acordada.
Os sonhos eram sua fuga para lugares distantes. Para uma praia onde
podia correr, nadar, pisar na areia e brincar, feliz como uma
criança.
Podia voltar ao passado, ouvir música, escrever poesias, que era a
sua grande paixão. Podia passear em belos jardins, sentir o aroma
das flores, sentir a maciez do pelo negro do seu gato, podia fazer o
que quisesse... Mas só em sonhos.
Estava enlouquecendo. A fuga cada vez maior da realidade, le-vando-a
à loucura. E tinha plena consciência disso. Queria dormir. Dormir e
não mais acordar. Queria morrer. Quem sabe, se morren-do, poderia
reviver em outra dimensão, saudável e feliz? Sentia que enlouquecia.
Precisava reagir. Perguntava-se: por que não a levavam para passear?
O que tinha feito de tão grave, que estava sendo castigada? Por que
a estavam enterrando viva? Dependia dos filhos era certo, porém,
ainda estava viva. Respirava. Sentia medo, sentia amor, sentia tudo.
Conformara-se com a doença que trans-formou seu corpo em algo
grotesco, mas não queria parar de viver. Notava que as visitas dos
familiares estavam menos frequentes.
Todos estavam se afastando... Como se já estivesse morta.
Restava-lhe a companhia dos filhos e netos, que a tratavam com muito
carinho. Não era amor que lhe faltava. Nem cuidados. Era vida! Era
ar!
Tudo começou a mudar com a visita da sua neta Celina, que percebendo
que a avó estava caminhando para a depressão, bei-jou-a
carinhosamente e disse que queria dar um passeio com ela. Foi um
rebuliço geral. Todos achavam que Janice poderia piorar com o
esforço. Celina, nos seus vinte anos, tinha o temperamento forte da
avó e não deixaria que nada a demolisse da ideia. Insistiu tanto,
que acabaram concordando. Foi como se Janice revivesse. Seus olhos
tristes brilharam de felicidade! Foram à pracinha, toma-ram sorvete,
passearam pelas ruas do bairro e depois voltaram. Todos notaram a
felicidade nos olhos daquela mulher forte, que tanto amavam. Foi com
imensa alegria que ela ouviu Celina dizer que não concordava com o
fato da avó viver sempre trancada no quarto, escondida e que dali
por diante, todos teriam como incum-bência, levar Janice para
passear diariamente.
Meio constrangidos, mas contentes com a felicidade de Janice, todos
concordaram.
A vida mudou para Janice a partir daquele dia: cortaram seus
cabelos, fizeram suas unhas, trocaram suas roupas antiquadas por
saias e blusas modernas, e os chinelos por graciosos sapatinhos que
escondiam seus dedos deformados.
Janice sentia-se feliz, sentia-se viva de novo e com o renascer da
sua autoestima, a saúde foi melhorando. Foi uma vitória
indes-critível, o dia que conseguiu segurar uma caneta e rabiscar o
seu nome. Estava se comunicando! Chamaram o médico que muito
sur-preso, receitou sessões de fisioterapia e novos medicamentos
para fortalecê-la. A melhora foi fantástica! Aos poucos, foi
recuperando parte dos movimentos e com a ajuda de uma fonoaudióloga,
voltou a falar, embora de um jeito meio que infantil.
Esta é a minha estória. E embora a minha doença seja incurá-vel, já
consigo escrever.
Uso um computador com alguma dificuldade, de um jeito meio gozado,
mas com enorme prazer. Minha cadeira de rodas, hoje, é uma amiga que
me leva onde eu preciso.
E é com imenso orgulho, que lhes apresento este meu primeiro
trabalho, depois da doença.
Há! E Janice é só um pseudônimo.
Vocês que têm um familiar doente e dependente lembrem-se que ele é
um ser humano! Não o confinem dentro de um quarto. Não o encarcerem.
Deixem que ele sinta que a vida ainda vale à pena e que é pre-ciso
lutar para sobreviver. Deixem que veja o sol, o vento, o mar, as
estrelas, e a vida em geral.
É tão pouco... E é tanto!
Dá trabalho, mas vale à pena!
Não escondam os seus doentes!
Não deixem que morram em vida, ainda que o cárcere seja re-pleto de
amor.
Liberte-os!