Renan estava de saco cheio... Estava cheio da vida que levava.
Estava cheio de tudo!
Sentado à mesa de
um bar, recordava o passado. A infância fe-liz...
Os pais e os irmãos. Tudo era motivo de risos, naquela casa e alegre
e humilde!
O Natal era comemorado com
algumas rabanadas e um copo de leite.
As
duas irmãs, Diva e Dora, ganhavam de presente, bonecas de pano que a
mãe confeccionava com amor!
Renan e o
irmão mais velho, Rodrigo ganhavam pipas, que o pai fazia.
Eram lindas pipas de cores berrantes, com desenhos dos heróis em
quadrinhos.
E como eram felizes com
àqueles presentes!
Com que alegria
beijavam agradecidos, os seus pais!
Todos começaram a trabalhar muito cedo, para ajudar nas des-pesas.
Estudaram até o ginasial, mas tiveram que deixar o colégio para
trabalhar! O pai adoecera.
A mãe,
coitada, lavava roupas para as madames da zona sul.
O dinheiro que os jovens ganhavam, gastavam em remédios pa-ra o pai,
sobrando somente alguns trocados para a comida.
Logo o pai morreu e a mãe, não suportando a tristeza morreu meses
depois, deixando os quatro jovens confusos e desamparados!
Foram meses de intensa agonia até se adaptarem a viver sem os pais!
Renan era o caçula e foi muito protegido!
Seus irmãos trabalhavam muito, mas queriam que Renan estu-dasse!
E foi assim, que Renan cresceu, aprendeu a tocar piano, for-mou-se
em literatura e conseguiu um emprego numa importante editora.
- Agora, - Renan pensou, - Vou retribuir tudo o que meus irmãos
fizeram por mim!
Comprou um apartamento
de quatro quartos e foi morar com os irmãos; um automóvel, que
dividia entre os três irmãos para o tra-balho e passeios nos finais
de semana; arranjou uma emprega-da para os serviços domésticos e
ajudava nas despesas!
Sentia-se grato à
vida, por viver feliz junto aos seus irmãos!
Agora tinham presentes de aniversário e de Natal!
Presentes comprados em elegantes lojas, mas que não tinham o mesmo
valor dos presentes feitos por seus pais!
Foi um ano maravilhoso, até aquele telefonema: Um acidente com o
carro! Seus irmãos estavam mortos. O enterro...
A dor imensa e o vazio! Quis morrer, mas continuou a viver!
Viveu para conhecer Elisa: a moça mais bela que já vira!
O anjo mais doce que conhecera!
A meiga
Elisa! Veio o namoro... O noivado... O casamento... E a decepção!
Elisa era preguiçosa, invejosa e ambiciosa!
Queria sempre mais e mais!
Era uma
pessoa vazia; destituída de quaisquer sentimentos de bondade, de
solidariedade ou de amor!
Não se
importava com o marido!
Só queria cada
vez mais, roupas de grife, joias e viagens!
Reclamava todo o tempo, chamava o marido de traste, de inútil e
depois de quarenta anos de casados, de velho imbecil!
Estava conservada, ainda era uma bonita mulher de meia idade,
enquanto Renan sucumbia diante da vida que levava.
Estava aposentado, humilhado e sentindo-se a cada dia mais infeliz!
Não tiveram filhos: Elisa não quis perder as formas perfeitas!
Não suportando ficar em casa, Renan ia jogar baralho ou jogo de
damas com os aposentados na praça do bairro, todos os dias.
Agora, sentado à mesa daquele bar, sentia que precisava mu-dar!
Precisava dar um novo sentido à sua vida!
Mas como? O quê poderia fazer?
O grande
cartaz de "Outdoor" em frente ao bar, respondeu a sua pergunta: "Você
é aposentado? Procure o Sesc! Venha fazer parte da família da
Terceira Idade!"
E Renan foi procurar o Sesc. E lá encontrou pessoas da sua
ida-de, com muita "garra" e vontade de viver.
E um novo Renan, alegre, sorridente, renasceu!
Resolveu desfazer-se de todo o passado!
Viver uma nova vida, enquanto ainda tinha tempo!
Elisa concordou com o divórcio em troca de uma polpuda pen-são!
Renan agora estava livre!
Sentia vontade
de gritar ao mundo a sua felicidade!
Divertia-se nas tardes dançantes e alegres do Sesc.
Tocava lindas melodias ao piano e fazia viagens divertidas com o
grupo da Terceira Idade.
Renan,
finalmente era feliz!
Sueli estava viúva! E dava graças a Deus por isso!
Nunca fora hipócrita! Não gastaria uma vela com defunto ruim!
Não derramara uma lágrima no enterro do marido, há seis me-ses!
Estava com 60 anos! Casara-se aos 20!
Não sabia como tinha aguentado tanto tempo de indiferença, desprezo
e solidão!
Quarenta anos de humilhações,
sem se queixar...
De lágrimas
escondidas! De sonhos adormecidos!
Havia
sido criada para ser esposa e mãe!
Casara cheia de esperança de ser feliz.
Esperança que aumentou com a vinda dos dois filhos.
Dedicou um amor imenso aos filhos enquanto eram pequenos, mas
depois, os adolescentes seguiram o caminho que o pai traçou!
Tornaram-se tão machistas quanto o pai.
Tão grosseiros e prepotentes! Tão afastados da ternura de Sue-li.
Eram três homens para cuidar, alimentar, lavar e passar.
Três homens que não lhe tinham a menor afeição!
Era a empregada de três homens preguiçosos, beberrões e gros-seiros!
O pai de Sueli era um oficial da Marinha.
Ficou viúvo quando Sueli era pequena e a criara e educara com muito
carinho!
Ao morrer, deixou para Sueli a
casa onde vivia e uma pensão vi-talícia.
Era desse dinheiro, que viviam a maior parte do tempo!
Carlos, o marido; Júnior e Nilo, os filhos; não gostavam de
tra-balho.
Não paravam em emprego algum
e gostavam de frequentar os botecos da vida!
Era o dinheiro de Sueli que sustentava a casa.
E os três: pai e filhos, só apareciam em casa, para comer, to-mar
banho e dormir.
Ninguém se lembrava de
Sueli.
Ninguém lhe dirigia a palavra, a
não ser, para pedir uma roupa limpa, um prato de comida ou um
dinheirinho para a cerveja!
Ninguém
perguntava se estava bem!
Ninguém
percebia quando havia chorado.
Ninguém
se importava!
Júnior estava com 38
anos e Nilo com 36, quando Carlos caiu na rua, bêbado, e veio a
falecer de traumatismo craniano.
Foi com
alívio que Sueli recebeu a notícia da morte do marido.
No dia do enterro, Sueli conheceu duas amantes de Carlos.
Não se importou: já não sentia nada por aquele homem havia muito
tempo.
Cumpriu seu dever de esposa,
permanecendo na capela até a hora do marido ser enterrado.
Quando o caixão desceu a sepultura, Sueli disse em voz alta, para
que as poucas pessoas presentes a ouvissem:
"- Carlos: vá
com Deus! Neste momento, eu enterro junto com você, a Sueli que
vo-cê conheceu! Ela será enterrada, pranteada e esquecida! Estará
morta! Mortinha da silva!"
Ninguém entendeu nada!
Acharam que ela
estava em choque e não sabia o que dizia.
Mas Sueli sabia muito bem...
A antiga
Sueli estava morta!
Vida longa à nova
Sueli!
Ao chegar em casa, Sueli colocou
as poucas roupas que tinha e os seus documentos em uma bolsa!
Escreveu o seguinte bilhete para os filhos:
"- Meus
filhos: Tem comida no forno. As roupas estão lavadas e passadas nas
gavetas do armário. A casa está impecavelmente limpa. Deixo tudo
para vocês! Como eu disse ao enterrar o pai de vocês, eu estou
morta! Não me procurem! Adeus!"
E começou a verdadeira vida para Sueli!
O mundo estava à sua espera!
Agora, ela
saberia encontrar a felicidade!
Nunca
mais permitiria que a magoassem!
Queria
gozar da liberdade!
Queria fazer as
coisas que realmente gostava!
Queria
cantar, dançar e fazer poesias, como quando era uma feliz
adolescente!
Sentia-se viva outra vez!
Sentia o coração pulsando mais forte, com todas as possibilida-des
que se abriam a sua frente! Sim! Viveria para si própria!
Seu ideal seria o de simplesmente viver feliz!
Aproveitaria cada segundo de vida que lhe restava!
Pegou uma parte de suas economias e alugou um pequeno apar-tamento
mobiliado.
Era o seu cantinho: simples e
aconchegante!
Tinha algum dinheiro numa
caderneta de poupança para emer-gências e a pensão do pai lhe
permitiria viver com dignidade.
Sueli
passou a semana cuidando de alguns detalhes: transferir a sua conta
bancária para outra agência com novas senhas e o novo endereço;
fazer compras no supermercado; comprar algumas rou-pas simples, mas
de bom gosto; sapatos combinando com as rou-pas; algumas bijuterias;
maquiagem e finalmente, foi a um salão de beleza.
Fez as unhas, as sobrancelhas e limpeza de pele.
Ao sair do salão estava bem diferente!
Seus cabelos brancos e compridos, agora estavam dourados e curtos.
Uma maquiagem discreta deu um novo realce aos seus olhos e aos
seus lábios!
Havia remoçado uns dez
anos!
A convite de uma vizinha, Sueli
foi conhecer o Sesc.
Ficou encantada!
Matriculou-se na natação, nas aulas de teatro e nas rodas de
poesias!
As aulas começariam no dia
seguinte e Sueli resolveu retirar do fundo de um baú, um caderno
antigo e amarelado pelo passar dos anos: seu caderno de poesias! Na
primeira página, a data: 26/05/1955. Sueli tinha 15 anos!
Chegou ao Sesc e dirigiu-se ao teatro que ainda estava
vazio.
Logo as luzes do teatro seriam
acesas, mas ainda era cedo!
Na penumbra
do palco, um pianista parecia estar afinando um piano.
De repente, uma suave melodia impregnou o teatro.
Sueli ouvia aquela música, emocionada!
A
música trouxe de volta as lembranças da sua juventude...
Quantas recordações!
Como em transe,
Sueli subiu ao palco, trêmula de emoção!
Debruçou-se sobre o piano.
O pianista,
com enormes olhos negros, olhava para ela fascina-do!
"- Nossos
Momentos!" A música que a "Divina Elizete Cardoso" can-tava - disse
Sueli, com o coração batendo forte. - Emocionada, Sueli começou a
cantar...
Sua voz fluía quente e
sensual...
-"Palavras são,
iguais aquelas, que eu te dediquei... Eu escrevi na fria areia, um
nome para amar... O mar chegou... Tudo apa-gou... Palavras, leva o
mar..."
Um arrepio de prazer correu pela nuca de Renan!
A mulher que estava diante dele, parecia saída dos seus sonhos!
Seus olhos castanhos lembravam gotas de mel!
Havia entre ambos uma enorme sensibilidade à flor da pele!
Uma corrente elétrica atingiu o casal, quando seus olhares se
encontraram!
Como se um completasse o
outro, a voz cálida acompanhava a melodia e os olhos do pianista,
numa comunhão total...
Em puro êxtase!
-" Teu
coração, praia distante em meu perdido olhar... Teu co-ração, mais
inconstante, que a incerteza do mar... Meu castelo de carinho, eu
nem pude terminar... Momentos meus... Que foram teus... Agora é
recordar..."
Os inesperados aplausos e gritos de "Bravo!", de uma plateia até
então tão silenciosa e invisível, quebrou a magia!
Renan e Sueli estavam tão envolvidos, que não perceberam a chegada
das pessoas do grupo da Terceira Idade que alegremen-te aplaudiam os
dois "astros" da tarde!
Um
pouco envergonhados, porém felizes, Renan e Sueli apre-sentaram-se e
sentaram-se junto aos outros membros do grupo.
Em meio à algazarra e risos, seus olhares teimavam em se en-contrar!
E um arrepio estranho, teimava em acariciar os corpos de am-bos.
Havia qualquer coisa de surreal naquele encontro!
Uma corrente invisível, quase palpável, fluía de um para o ou-tro!
E os dois percebiam com clareza essa força que os aproximava!
Saíram do Sesc juntos, sentaram-se em uma lanchonete e como se
fossem velhos amigos, falaram de suas vidas, suas desilusões, seus
anseios e seus sonhos!
Falaram de suas
paixões pela música, teatro e poesia.
Renan leu, emocionado, as poesias que Sueli escrevera ainda uma
menina!
E falaram de amor! Falaram de
esperança num futuro a dois!
Falaram de
felicidade!
Compreenderam que o encontro
entre os dois, já estava marca-do no caderno do Destino!
Precisavam passar por tudo que passaram, para aprender a dar valor à
vida! Era a Sabedoria dos Tempos! A Roda da Vida, sempre girando!
Mas o amor sempre venceria!
Podia
demorar, mas ele sempre seria vitorioso!
Renan e Sueli sabiam disso, agora!
E de
mãos dadas, caminharam...
Rumo à
felicidade!