Ano de 2000. Era o primeiro carnaval do século! Todas as previ-sões de
catástrofes que acabariam por destruir o
mundo, felizmen-te falharam. O
evento que enlouqueceria todos os computadores não aconteceu. A alegria
de
se viver o término de um milênio e se começar outro, era geral.
Eu, minhas irmãs Nelly, Neyde, Graça, e Auretes; minhas pri-mas Leninha e
Nádia; e as amigas Amélia, Severina, Mara, e Sueli; combinamos de fazer
fantasias iguais. Depois de algumas discus-sões, combinamos de sair fantasiadas de havaianas, no carnaval.
Pedimos a minha tia Margarida para fazer nossas fantasias e quando fomos
buscá-las, ficamos radiantes. Estavam lindas! A mi-nha era branca.
À noite nos arrumamos em minha casa, cada havaiana de uma cor diferente.
Sem falsa modéstia, éramos um grupo de onze belas jovens ha-vaianas e
chamávamos a atenção das pessoas. Fomos brincar em um clube da moda e o
salão estava repleto de foliões, cantando e dançando. Quando entramos, todos os olhares se dirigiram em nos-sa direção com admiração.
A música estava alta, a alegria era geral e nos misturamos à
multidão, dançando e cantando. De vez em quando, um Pierrô azul
passava por mim e dizia com uma voz rouca e sensual:
- Eu te amo. - A cada volta do salão ele me repetia
as mesmas palavras...
A princípio eu achei engraçado. A cada vez eu ria e dizia:- Eu também.
- Depois comecei a reparar nos olhos por trás da máscara. Eram olhos
azuis, quase da cor da fantasia. Seus olhos me olhavam com tal ternura, que
eu comecei a me interessar.
Num certo momento, ele pegou a minha mão delicadamente e me conduziu
para uma mesa afastada do salão. Sem resistir eu o segui
obediente...
Estava totalmente hipnotizada! Conversamos durante toda aquela
noite. Pedi
que retirasse a máscara mas ele me disse que só o faria no
último dia de Carnaval. Fiquei ainda mais curiosa mas, concordei com todo aquele
mistério. Eu
disse o meu nome, minha idade, enfim, a minha ficha
toda. Da minha parte
não haveria nenhum mistério.
Nos encontramos no mesmo lugar, nos três dias de carnaval. Dançamos,
brincamos, cantamos e conversamos. Descobrimos que tínhamos os
mesmos gostos em música e literatura.
Ele seduziu toda a turma com seu jeito alegre e misterioso e deixando
minhas irmãs loucas de curiosidade querendo tirar-lhe a máscara.
No fim do baile do último dia de carnaval, nos beijamos. Eu estava fascinada! Ele me beijou com muita ternura, muita delica-deza. Seus lábios roçando levemente os meus.
Olhou-me nos olhos e disse: - Espere-me. - E se afastou. Pensei que
ele
fosse ao bar. Mas ele não voltou. Preocupada, procurei por ele em cada
canto do salão, em cada dependência do clube e na-da... Ele não estava.
Sem
sentir, comecei a chorar. Minhas irmãs ficaram preocupadas comigo.
Diziam
que amor de carnaval era as-sim mesmo, que eu devia parar de
pensar nele.
Depois do carnaval a tristeza tomou conta de mim. Por quê ele desapareceu assim? Eu queria esquecer, mas as palavras dele di-zendo:
“- Espere-me”, não saíam da minha cabeça.
A volta às aulas, a rotina diária, me fizeram voltar ao normal. Eu era
jovem, bonita, inteligente, e não ia ficar chorando pra sempre, por um
cara
que eu nem conhecia. Quem ele pensava que era?
O ano de 2000 passou e chegou o de 2001. Como um replay de 2000, no
carnaval tornei a encontrar o pierrô. Desta vez, a fantasia era verde.
Voltou a dizer que me amava e eu acreditei; voltou a me hipno-tizar e
eu
deixei;
e depois, pedindo-me para esperar, ele partiu.
Ele reapareceu no carnaval de 2002 com um pierrô branco, e no de
2003
com um pierrô negro. Sempre da mesma forma. Sempre me encantando e
partindo...
Eu vivia o ano todo, só pensando no momento de encontrá-lo. Nos
meus
dezoito anos eu me apaixonara pelo mistério. Mas em 2004 ele não apareceu.
Procurei por ele durante os dias de carnaval, mas não o encon-trei. A
tristeza que eu sentia era muito grande. Eu não
queria co-mer, estudar ou
conversar.
As meninas (era como nos tratávamos), vieram falar comigo. Decidiram
me
contar algo que descobriram há algum tempo e não tiveram coragem de
me
contar: O meu pierrô era casado. No último baile, combinaram de
segui-lo
sem que ele percebesse. Vi-ram quando ele entrou numa casa e perguntaram
na vizinhan-ça. Ficaram sabendo que seu nome era Américo, que era casado,
tinha quatro filhos e a cada ano saía no carnaval com um pierrô de cor diferente. Não me contaram antes para me poupar de sofri-mentos.
Fiquei com ódio! Fiquei com muita raiva daquele homem que brincou
com os
meus sentimentos por tanto tempo. Eu não ia dei-xar barato... Ele
tinha
que me pagar! Ele tinha que sofrer como eu estava sofrendo. Eu precisava
me vingar.
Peguei o endereço e disse à turma que precisava ir sozinha a casa dele.
Eu precisava ir só. Eu precisava conhecer a esposa dele, dizer-lhe como
ele
era falso, como havia enganado a nós duas.
Cheguei à casa do endereço. Era uma casa amarela, com cercas brancas. Cortinas delicadas davam-lhe um ar de singela elegân-cia. Um jardim
bem
cuidado estava alegremente florido. Minhas pernas tremiam... A
possibilidade
de revê-lo fazia meu coração disparar.
Toquei a campainha e uma senhora aparentando
uns sessenta anos abriu a
porta.
– Pois não? – disse.
- Eu gostaria de falar com o Américo. - eu disse.
A senhora me olhou intensamente, de uma forma estranha...
- Entre, querida. - ela disse. - Eu estava lhe esperando.
- Acho que a senhora está me confundindo com outra pessoa. - eu disse.
- Eu acho que não, mas veremos! - ela disse.
- Eu gostaria de falar com o Américo. – eu disse de novo.
- Eu sou a esposa dele. Você é a Lara, não é?
- Sim. - eu disse, quase caindo de susto! – Como é que a senhora sabe?
- Entre e sente-se. O Américo me contou. – ela disse. – Eu vou lhe contar
tudo. Verá como a vida resolveu nos unir na mesma es-tória.
Entrei naquela casa, muito confusa. Sentei-me em uma poltro-na
enquanto a senhora falava:
- Quando eu conheci o Américo, ele era louco por carnaval. Eu não
gostava, e quando nos casamos fiz ele prometer que não ia mais brincar
nem
usar fantasias. Durante os 40 anos em que fomos casados ele cumpriu a
promessa. Infelizmente, Américo ficou do-ente. Os exames médicos
mostraram um
tumor no cérebro. Não havia nada que se pudesse fazer. Não
adiantava operar. Américo me pediu que o liberasse da promessa. Que eu
permitisse que
ele se fantasiasse e fosse aproveitar o tempo que lhe
restava. Concor-dei! Como eu podia negar um pouco de alegria, a quem estava
sofrendo tanto? A
quem me havia feito feliz por tanto tempo? Foi
assim, que você o conheceu.
Um pierrô de cor diferente para cada ano.
Um dia, ele chegou em casa mais triste que de hábito. Contou-me
tudo.
Contou-me sobre você, me disse que as suas amigas o seguiram e que
um dia você viria procurá-lo. Deixou uma coisa para você. Ele se foi
pouco depois do carnaval de 2003.
- Eu estava totalmente confusa. Meu
Deus! Morto? O meu pier-rô, morto? Como o Américo podia ser
casado com esta senhora? Há 40 anos! Que idade
ele podia ter? Devia estar havendo algum enga-no. As perguntas se atropelavam na minha cabeça, quando ela retornou. Trazia nas mãos, um
álbum de
fotografias amareladas pelo passar dos anos e uma caixa de
madeira, parecida
com caixas de charutos.
- Este é o Américo. Estas são as fotos do nosso casamento e das nossas
bodas de prata. E esta aqui, foi tirada no último aniversário dele. Nós
fomos
felizes... Muito felizes!
Olhei fascinada para aquelas fotos. A mulher muito bonita da fotografia
tinha os mesmos traços da senhora que estava ao meu lado. O rapaz
da fotografia tinha o sorriso e os olhos azuis que eu já conhecia.
Seu rosto sorridente olhava para a jovem com amor.
Em outra fotografia, um senhor de cabelos grisalhos tinha os olhos
azuis
e um sorriso triste. Inconfundíveis! Era o Américo.
A senhora ao meu lado tinha os olhos marejados de lágrimas. Eu estava
muda, sem saber o que dizer.
Não queira mal ao meu marido, - ela disse. – Você vai compre-ender tudo
quando abrir a caixa que ele lhe deixou. Tome. Guarde com muito carinho.
Mas deixe para ler quando chegar em casa. Quando estiver sozinha. Meu
nome
é Marta. Se precisar, estarei aqui.
- Obrigada.. - eu disse. Saí daquela casa mais triste do que quando entrei.
Não podia compreender. Ao chegar em casa, tranquei-me no meu
quarto, sentei-me na cama e enchendo-me de coragem abri a caixa. Dentro
havia
quatro máscaras, cada uma de uma cor: azul, verde, branca e preta.
Comecei a ler a carta, escrita com uma letra delicada, que dizia:
- Querida Lara:
Agora você sabe porque eu não podia tirar a máscara. Não me odeie,
por
favor.
Tudo começou como uma brincadeira. Eu queria ver se ainda podia cativar
uma jovem.
Quando eu vi você vestida na sua havaiana branca, fiquei exta-siado!
Você
era a moça mais bonita daquele baile! Esse coração, insensato, velho e
doente, se apaixonou no mesmo instante. Eu já sabia que me restava pouco
tempo e achei que não faria mal um pouco de ilusão em minha vida.
Mas não esperava que você também se apaixonasse. Como eu podia esperar
que uma moça linda como você, se conformaria em amar um homem que
nem
conhecia? Que nem o rosto podia ver? Mas você me amou. Eu podia
ver
esse
amor nos seus olhos, sempre que nos encontrávamos e esse amor aquecia
o
meu coração. Eu sei, fui egoísta... Não me dei conta do quanto
você estava
sofrendo. Saber-me amado por você, me dava forças para enfrentar a
doença e a proximidade da morte. Mas saiba, que em nenhum momento, eu
fui mentiroso ou falso. Todos os meus sentimentos foram verdadeiros. Eu a
amei intensamente, plato-nicamente, como a uma santa no altar.
Perdoe-me, querida.
Per-doe este pobre velho. Contei tudo a Marta e ela me compreendeu e
perdoou. Apesar de tudo, eu fui feliz. Quantos homens
tiveram a ventura de ter
uma companheira maravilhosa por 40 anos e uma linda e romântica ilusão no
final da vida? Eu tive as duas coi-sas. Nos
meus 65 anos, você foi a coisa mais
linda que me aconte-ceu! A ilusão
mais querida! Que pena que eu tenha feito você so-frer tanto. Por
favor, me perdoe. Perdoe este pierrô que só teve coragem de morrer quando
recomeçou a viver. Quando lhe conhe-ceu. Lembre-se
sempre de mim com
carinho. Para toda a eternida-de, sempre seu,
Américo.
Eu sei que parece loucura, mas fiquei feliz por ter dado alguma alegria
a uma pessoa no fim da vida. E senti também um grande alívio. Não sentia
mais
raiva.
Agora eu sabia que ele não havia brincado com os meus sentimentos.
Eu
sabia o quanto ele me amara e o quanto ele também sofrera. Pobre pierrô!
Gostaria de ter estado junto dele na sua partida. Mas a Marta tinha esse
direito.
Que mulher altruísta! Como deve ter amado o marido. Que co-ração
enorme!
Guardei com carinho a carta e as máscaras.
Ficará para sempre guardada em meu coração, a lembrança dos nossos
encontros.
Às vezes, parece-me ouvir a sua voz dizendo: “- Espere-me.”
Adeus, pierrô. Adeus, amor
de carnaval que encheu de mistério a minha
jovem vida.
Jamais o esquecerei!