Ela era uma mulher gigante. Ou, pelo menos era assim que nos meus
sete anos, eu a via: alta, magra, nem bonita nem feia. Se existe uma
palavra que a defina, eu diria: austera.
Seu nome era Nícia Maria Vinchon. Era professora na escola General
Osório, em Coelho Neto, e foi a professora que eu jamais esqueci.
Era exigente, mas de uma maneira amorosa, maternal mesmo.
Foi minha professora nos primeiros dois anos do primário, em 1952 e
1953.
D. Nícia, era muito querida por todos os alunos e não era sem razão.
Amava os seus alunos, com o desvelo de mãe e a cum-plicidade de
amiga.
Meu pai era motorista do
antigo I.A.P.C., e o seu salário, não era lá essas coisas, ainda
mais tendo que sustentar sete filhos. Quando começou o ano letivo,
todos os alunos receberam a lista de material escolar. Quando
cheguei em casa e mostrei a lista, meu pai, muito constrangido, me
disse que não poderia comprá-la.
Quando D.Nícia soube, comprou-me todo o material que eu precisava e
proibiu-me de comentar com qualquer pessoa.
Quando a mãe da minha amiga Mariana ficou doente, D. Nícia reuniu a
turma e nos convocou para uma visita à casa da nossa amiga. Falou da
importância da amizade, da generosidade e do dever que todos nós
tínhamos em relação aos outros. Pediu a turma que cada um de nós
levasse no dia seguinte, uma fruta. Ela nos acompanhou na visita,
levando uma linda cesta com as frutas que os alunos levaram e mais
alguns legumes que ela própria com-prou.
Quando o pai do nosso colega Paulinho ficou desempregado, D. Nicia
pediu a diretora da escola para deixá-lo como faxineiro. Arrecadava
no final do mês, com as outras professoras, uma quan-tia em dinheiro
para pagar o seu salário. E todo dia ela levava o almoço para ele.
Foi assim, até que ele conseguiu um emprego.
Essa era D. Nícia: bondosa, amiga e sempre preocupada em ajudar.
Numa turma de crianças de sete, oito anos, quando a pro-fessora se
ausentava da sala de aula, mesmo que por poucos minu-tos, nós
fazíamos a maior bagunça.
Jogávamos bolinhas de papel uns nos outros e batucávamos nas
carteiras. E ficávamos bem quietinhos quando a professora vol-tava.
Desconfio que D. Nícia sabia de tudo, mas fingia não saber.
Numa dessas bagunças, Almir, o garoto mais levado da tur-ma,
derrubou a jarra de vidro da mesa de D. Nícia, que se fez em mil
pedaços no chão. Imediatamente, todos nós, sentamos e baixa-mos a
cabeça nos braços cruzados sobre a carteira. D. Nícia che-gou, olhou
os cacos, e perguntou:
- Quem é o responsável?
Ninguém disse nada. O silêncio na sala era total.
Então, D. Nícia começou a falar sobre assumir responsabili-dades...
Falou da importância da palavra dada, de se enfrentar as
consequências dos nossos erros e de como a nossa vida poderia valer
à pena, ou não, dependendo dos nossos atos.
Falou da vergonha que poderíamos sentir e causar às pessoas que nos
amavam.
Falou de confiança, de honra e de honestidade, de uma for-ma que nos
fez chorar.
Havia lágrimas nos olhos de cada um dos seus pequeninos alunos.
Quando voltou a perguntar quem havia quebrado a jarra, o Almir se
levantou e disse:- Fui eu. Inesperadamente, sem que hou-véssemos
combinado nada, cada um de nós se levantou e pediu desculpas, porque
participamos da algazarra que acabou por que-brar a jarra. Todos nos
sentíamos responsáveis.
Nosso castigo foi varrer a sala e catar os cacos. Não sei se algum
dos meus antigos colegas guardou aquelas palavras, mas no meu caso,
jamais as esqueci.
A vida levou cada uma daquelas crianças por diferentes ca-minhos,
fazendo com que nos perdêssemos de vista.
Por onde andará o Plínio, meu companheiro das danças gaú-chas? A
pequenina Cléia, nossa mascotinha? E o “levado” Almir?
Estão todos bem escondidinhos na minha memória.
Gostaria de saber notícias de D. Nícia. Será que ainda vive? Como
estará? Será que ela percebeu o quanto significou para aque-la
turminha de crianças?
Eu poderia contar uma infinidade de casos sobre a bondade e o amor
que D. Nícia sempre demonstrou pelos seus alunos, mas teria que
escrever páginas e páginas.
Que exemplo de mulher, de ser humano e de mestra!
Se você souber alguma notícia, sobre uma professora chama-da Nícia
Maria Vinchon, que no ano de 1952 e 1953, lecionou na Escola
Municipal General Osório, no subúrbio de Coelho Neto, Rio de
Janeiro, por favor, me avise. Eu gostaria muito de poder dizer-lhe,
o quanto seus ensinamentos ficaram para sempre, presentes em meu
viver, ajudando-me nas lutas diárias da vida e mantendo a minha
cabeça erguida.
Que admirável lição de amor, de ternura e de cidadania nos deu,
naquele dia, em que quebramos a sua jarra!
Bendita jarra. E bendita seja, minha mestra...
Onde quer que a senhora esteja.