Armadilhas da Vida


    Acordei com o estranho pressentimento, de que alguma coisa ia acontecer...

    Depois de uma noite mal dormida, entremeada de pesadelos, foi com muito esforço que me levantei e tomei um banho. Lá fora o sol brilhava em todo o seu esplendor, em vaidoso desprezo pelo meu abatimento. Tomei um café puro e saí em direção aos penhas-cos. Como a muitos anos fazia, sentei-me em uma pedra, e a visão do mar, lá em baixo, permitiu que eu pensasse calmamente, em tudo o que aconteceu.

    Eu tinha 25 anos, e acabara de me formar. Era uma advogada! Estava cheia de planos e sonhos, estava certa de que o mundo me pertencia e pretendia conquistá-lo.

    Aos 16 anos, fugi de um lar onde a violência era coisa rotineira. Cansada de ser agredida por uma mãe viciada em drogas e um pai bêbado, fugi para me salvar.

    Cheguei ao Rio de Janeiro, com a roupa do corpo e a alma cheia de coragem. Orientada por minha madrinha que me deu algum di-nheiro, dirigi-me ao bairro de Santa Tereza, a procura de um pen-sionato para moças. As freiras que comandavam o lugar eram bem severas, quanto as normas do pensionato, mas eram verdadeiros anjos, bondosas e sempre dispostas a aconselhar e ajudar as mo-ças. Como eu não estava acostumada com a bondade das pessoas, no início, fiquei muito desconfiada. As irmãs, não se importaram e eu comecei a acreditar nas pessoas, vendo todos os dias, as irmãs se desdobrando para dar as moças hospedadas, carinho e conforto. Foi através das irmãs, que eu consegui o meu primeiro emprego. Também recebi roupas usadas, mas em muito bom estado que as moças deixavam quando partiam para uma nova casa. Saí do pen-sionato para morar no emprego.

    Fui trabalhar como acompanhante de uma senhora muito rica, mas portadora de uma doença que limitava os seus movimentos. Era casada com um médico famoso, Dr. Jaime Ferreira, e tinha duas filhas, também médicas. Gostei imediatamente de toda a família, que me acolheu como se eu fosse uma parenta.

    No dia em que recebi meu primeiro pagamento, levei um bruto susto: eu nunca tinha visto tanto dinheiro, e fui dizer a minha pa-troa que o salário estava errado. Foi com muitas risadas que ela me explicou que estava certo, mas que eu devia ter cuidado ao gastá-lo e que devia pedir sempre a orientação das irmãs do pensionato. Escrevi para Maria, minha madrinha, devolvendo o dinheiro que ela me havia emprestado, agradecendo e contando como eu estava feliz. Uma semana depois, Maria me escreveu, con-tando a morte dos meus pais em um acidente. Foram atropelados.

    Chorei de tristeza, ao pensar que tudo poderia ter sido diferen-te, que poderíamos ter sido uma família feliz, mas até nas minhas lágrimas, havia um pouco de alívio, por sentir que eles estavam em paz.

    Minha função era acompanhar dona Lídia ao médico, às compras e onde mais ela quisesse ir, mas nós duas, transformamos essas saídas em verdadeiros passeios. Dona Lídia era culta, educada, e sabia receber as visitas que eram muito frequentes em sua casa. Com ela aprendi tudo sobre etiqueta, moda e artes em geral. Quando recebia seus convidados, apresentava-me como sua secretária e fazia questão que eu me juntasse a eles. Nora e Joana, suas filhas, às vezes fingiam sentir ciúmes, mas sempre me trataram com muito carinho, sendo verdadeiras amigas.

    Certo dia dona Lídia, Nora e Joana me chamaram ao escritório. Dona Lídia disse: - Patrícia, nós decidimos que você deve voltar a estudar e já acertamos a sua matrícula num ótimo colégio. Não vamos aceitar nenhuma desculpa. Queremos que você tenha uma carreira. Você é inteligente, esforçada e merece uma chance de vencer.

    Fiquei louca de alegria. A minha infância sofrida havia destruído a minha autoestima. Com aquelas palavras de dona Lídia, pude compreender que eu era importante, que eu podia vencer por meu próprio mérito!

    Prometi a mim mesma, jamais decepcionar pessoas tão maravi-lhosas, que confiaram em mim.

    O colégio ficava perto do pensionato, e eu estudaria a noite e dormiria no pensionato.

    As irmãs me receberam com o mesmo carinho de sempre.

    Durante três anos convivi com dona Lídia, aprendendo, vendo a sua força, seu otimismo em relação à vida e sua coragem ao en-frentar a doença que a arrebatou de nós. Dona Lídia me ensinou o que era uma família de verdade!

    A morte de dona Lídia trouxe uma imensa tristeza para todos nós. Sentia-me perdida sem os seus conselhos, sem a sua proteção e sem a sua alegria.

    Nora deu-me emprego em seu consultório com um ótimo salário e eu pude enfim, dar entrada em um pequeno apartamento no bairro do Flamengo. A vida sorria para mim, e eu procurava não lembrar a infância tão dolorida. Ás vezes, a saudade de dona Lídia era insuportável, mas eu sabia que ela não gostaria de me ver triste, então eu procurava afastar a tristeza.

    Quando passei no vestibular para a faculdade de direito, pensei que ia explodir de tanta emoção! Nora, Joana e as irmãs do pensio-nato, ligaram para me cumprimentar enquanto eu só chorava de alegria.

    Minha vida resumiu-se nesses anos de faculdade, em trabalho, estudo, e um cinema muito raramente. Fiz ótimas amizades com rapazes e moças com quem estudava para as provas e trocava confidências. Fantasiávamos que mudaríamos o mundo! Foram anos felizes onde tudo acabava em risadas! Os anos passaram e chegou o dia da formatura. Vivi tudo como se fosse um sonho! Foi tudo maravilhoso! A cerimônia de colação de grau, a recepção, o baile!

    Eu estava nas nuvens! A música, as luzes do salão, as vozes ale-gres dos formandos e seus familiares, a noite enfim, tudo era perfeito! Eu conquistara, a minha vitória! Eu era uma advogada!

    Fechei os olhos em uma prece de agradecimento a Deus e agra-deci também a D.Lídia!

    - Posso partilhar dos seus pensamentos? Ou esse brilho nos olhos é exclusivo?

    A voz me fez olhar em sua direção, e eu quase pulei com o susto. Ali, bem na minha frente, estava o homem mais bonito que eu já vira! Alto, moreno, olhos verdes, contrastando com os cabelos negros. Sorrindo se apresentou: - Meu nome é Vítor Roma-no, sou médico e adoro garotas sonhadoras. Sei que seu nome é Patrícia, formada em direito e linda. Quer dançar comigo?

    E foi assim que Vítor se tornou o meu universo. Ele era tudo o que uma mulher podia desejar. Era atencioso e gentil! Educado e alegre! E me fazia muito feliz!

    Joana e Nora ficaram felicíssimas, pois ele era um médico de renome, muito respeitado.

    Casamo-nos em seis meses, e nossa lua de mel, foi um verdadei-ro sonho. O que eu ainda não sabia, é que o sonho ia se transfor-mar em pesadelo!

    Regressamos felizes e fomos morar na casa dele, no Alto da Boa Vista. Deixei um corretor encarregado de vender o meu aparta-mento e por insistência de Vítor, deixei o emprego que tanto gos-tava. Vítor era rico e me convenceu que eu não deveria mais tra-balhar. Insisti. Eu era uma advogada e não queria deixar meu di-ploma guardado numa gaveta.

    Mas ele me convenceu, dizendo que queria me encontrar sempre em casa. Acabei cedendo. Por amor, eu desistiria dos meus sonhos de construir uma carreira e ser independente.

    Logo nas primeiras semanas, comecei a perceber que alguma coisa estava errada, mas não sabia bem o quê. Vítor mostrou-se ciumento, não gostava quando amigos me ligavam, implicava com as minhas roupas. Era metódico, além do limite da minha compre-ensão.

    A despensa devia estar sempre arrumada na ordem que ele de-terminava.

    Eu não podia tirar sequer, um bibelô do lugar. Eu não queria brigas e fui cedendo, fazendo tudo o que ele queria, mas para ele, eu não fazia nada certo.

    Parei de sair, afastei-me dos meus amigos e só usava as roupas que ele me comprava.

    Não cuidava mais dos cabelos nem das unhas. Parei de usar ma-quiagem. Mas ainda assim, nada o satisfazia.

    Fiquei grávida e pensei: agora tudo vai mudar. Um filho vai nos unir e acabar com esse ciúme doentio!

    Dei folga a empregada, fiz um jantar maravilhoso, arrumei a mesa com flores e velas e aguardei que Vítor chegasse. Ele já che-gou de mau humor e quando viu a mesa toda enfeitada, perguntou: - O que está acontecendo? Parecia desconfiado, então eu disse de uma vez: - Estou grávida. Vamos ter um filho!

    O que aconteceu então, ainda está muito confuso na minha mente...

    O tapa na cara, os socos e pontapés na minha barriga, o gosto de sangue em minha boca, as lembranças das surras quando meni-na, a dor, e finalmente a abençoada escuridão!

    Acordei numa cama de hospital com hematomas, machucados e dores por todo o corpo.

    O filho que eu tanto queria, e que eu pensava que ia alegrá-lo, já não mais existia.

    Eu só queria morrer... A vida havia perdido todo o sentido. Meu mundo era um caos!

    Soube depois pelos médicos, que eu fiquei desacordada até a manhã do dia seguinte, quando a empregada me encontrou caída no chão, toda suja de sangue e chamou a ambulância e a polícia, pensando tratar-se de assalto. Vítor foi tão covarde, que nem me prestou socorro.

    Quando tive alta do hospital, liguei para Joana que foi me buscar. Fui para a casa dela, e aguardei a polícia, para formalizar a queixa. Joana estava inconsolável, não queria acreditar.

    Contei aos policiais tudo o que aconteceu, e eles pareciam duvidar. Meu marido era uma pessoa importante! Insistiam em dizer que eu devia “ter feito alguma coisa”, para ser agredida daquela forma. Fiquei muito confusa com a arrogância daqueles policiais que deveriam me proteger, porém pareciam me acusar! Quando eles saíram, caí num pranto desesperado sendo amparada por Joana, que assistiu a tudo, sem nada entender. Nada aconte-ceu! Nenhuma punição! Nada! Vítor estava livre! Ninguém se importava com o que eu havia sofrido.

    Alguns dias depois, vieram os telefonemas.

    No início, Vítor mostrou-se arrependido, dizia que me amava, que estava sofrendo. Mas vendo que eu estava irredutível e que não acreditava numa só palavra do que ele dizia, começou com ameaças. Ameaças de espancamento, de sequestro. Dizia que eu lhe pertencia e que se não fosse dele, não seria de mais ninguém! Ameaçava me matar!

    Por orientação de Joana e Nora, gravei tudo. Gravei todas as ameaças e entreguei tudo a polícia. Intimado, Vítor compareceu a delegacia e mostrou-se arrependido, chorou muito, disse que me amava e convenceu os policiais de que ele, sim, era uma vítima!

    Ele era um membro respeitado da sociedade! Um médico reno-mado! Eu era a culpada de tudo! Mas prometeu não mais me mo-lestar. Respirei aliviada!

    Com a ajuda de Joana, arranjei emprego no departamento jurídico de uma grande empresa, e com a venda do meu aparta-mento, comprei outro menor, mas muito aconchegante em Copaca-bana. Os meses passaram e eu recomecei a viver. Já não tinha mais o entusiasmo de antes, mas era um recomeço.

    Uma noite, ao chegar do escritório, encontrei no chão, um envelope que alguém havia colocado por baixo da porta. Quando abri o envelope, fiquei gelada com o que li: “Vagabunda! Você me pertence! Você vai morrer!” Eu sabia quem havia escrito aquelas ameaças! Liguei para o Dr. Walter, meu patrão, que de imediato foi ao meu encontro. Vendo que o papel era comum, as letras recortadas de alguma revista, o Dr. Walter chegou à conclusão de que não poderíamos acusar Vítor. Não havia provas.

    Fui à delegacia e o Dr. Walter registrou a ocorrência, mas, dei-xando bem claro, que suspeitava do Vítor. Dois dias depois, ao descer do carro na garagem do meu prédio, Vítor surgiu não sei de onde. Encostou uma faca no meu pescoço, jurando que me mataria se eu não voltasse para ele. O porteiro vinha em nossa direção, e Vítor me soltou e foi embora, calmamente. Eu vi claramente, como seria fácil ele me matar! Desesperada, com muito medo, resolvi fugir.

    Retirei do banco algum dinheiro que havia economizado, e sem dizer nada a ninguém, fui para São Paulo e depois para Florianó-polis. Aluguei uma casa muito acolhedora, à beira-mar, ao pé de penhascos impressionantes. Uma alegre colônia de pescadores!

    Arranjei emprego numa empresa de pescado como secretária e fiz amizade com o povo do lugar. Uma gente simples, porém honesta, amiga e acolhedora... Uma gente que me ensinou que se pode sim, ser feliz com uma vida singela, tendo o mar por testemunha! Aprendi a respeitar suas tradições e superstições!

    Passaram-se os anos... Então acordei com o estranho pressenti-mento, de que alguma coisa estava para acontecer.

    Voltei para a casa onde eu vivi feliz por seis anos. Uma casa azul, com cercas brancas! Um jardim florido que lhe dá ares de casa de boneca! No quintal há uma horta com verduras variadas. Uma casa pequenina, mas que abriga toda a paz do mundo! Uma casa sem “forno de micro-ondas”, sem “freezer”, sem “condiciona-dor de ar”, sem as “maravilhas”, que me fizeram esquecer, o quanto a felicidade é simples: Andar na areia descalça, com o vento desalinhando meus cabelos! Sentir o calor do sol acariciando meu rosto! Caminhar na chuva, usar bermudas e sandálias! Andar de bicicleta à tardinha... Deitar numa rede olhando o céu cheio de estrelas: Isso é felicidade!

    Na caixa de correspondência, encontrei uma carta do Rio de Janeiro.

    Era de Joana, a única pessoa que tinha o meu endereço e que me escrevia regularmente. Curiosa, abri o envelope e fiquei pasma com as notícias: - “Querida Patrícia, não se assuste: As notícias, embora tristes, representam a sua total liberdade. Vítor foi assas-sinado pela atual companheira, que ao ser agredida, atirou nele com a arma do próprio Vítor. Finalmente a verdadeira natureza daquele monstro veio a baila! Você está livre! Volte! Estamos saudosos! Amor, Joana.”

    Deixei que as lágrimas represadas por tanto tempo corressem livremente!

    Chorei de tristeza, pelo amor que eu pensava ter encontrado e que nunca existiu! Chorei de alivio, por me sentir livre, sem o medo que carreguei por tanto tempo! Chorei de alegria por poder voltar para casa, para a minha gente, para o meu Rio querido! Chorei! Chorei! Chorei!

    O avião já sobrevoa o Rio de Janeiro e o Cristo Redentor de braços abertos, me dá as boas vindas! Como é bom rever a minha Cidade Maravilhosa!

    No aeroporto estão Joana, Nora e o Dr. Walter, amigos queridos, verdadeiros, preciosos!

    Nos abraçamos matando as saudades que sentimos!

    Olho com atenção o alvoroço das pessoas que vêm e vão, no aeroporto, sentindo a imensa alegria do regresso ao lar!

    De repente, meus olhos encontram um par de olhos, que me olham com insistência. Um homem de meia idade olha-me sorrin-do. Retribuo o sorriso, com a certeza de que ainda posso recome-çar.

    Cresci apanhando, sofrendo, chorando. Mas estou aqui! Mais for-te! Mais sábia! Mais adulta!

    Ainda posso amar e ser amada!

    Cresci como pessoa! Aprendi a dar valor às pequeninas coisas que fazem a vida valer a pena!

    Não sou mais aquela Patrícia, que queria conquistar o mundo! Agora eu só quero conquistar a minha felicidade.

    Agora eu sei que a felicidade está nas coisas simples! É só pres-tar atenção!

Nilda Dias Tavares
Rio de Janeiro - RJ


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