Elegante e orgulhosa nos seus sessenta anos, com a sua insepa-rável
bengala preta com castão prateado, minha avó Ana parecia uma figura saída
de algum castelo francês, das histórias que eu lia quando menina.
Seus cabelos totalmente brancos estavam sempre impecavel-mente arrumados e presos por uma travessa de prata, presente do vovô Paulo.
Seus olhos verdes, grandes como duas esmeraldas, tei-mavam sempre em revelar as
emoções que vovó queria esconder.
Suas roupas
sóbrias e elegantes inspiravam respeito e admira-ção a todos que a conheciam.
Era uma
mulher forte que sofrera perdas terríveis mas
manten-do-se
firme como uma rocha, conservou a família unida.
Muito cedo
aprendi com meus pais a admirar e amar vovó Ana.
Meu pai
era um professor alegre e carismático. Criado em um orfa-nato sem conhecer
seus pais, apaixonou-se "de cara" pelo cari-nho de vovó Ana.
Ele costumava
brincar com minha mãe, dizen-do: - Só me casei com você pra ficar com
"mãe
Ana!"
Em 1959,
com catorze anos, perdi meus pais em um acidente de automóvel e vim para esta casa morar com vovó Ana.
Ela era mãe
da minha mãe e sofreu tanto quanto eu a morte dos meus
pais, a quem ela amava profundamente e perdeu tão pre-maturamente.
Eu nunca
tinha visto vovó chorar, mas seus olhos eram a
teste-munha
muda da dor que ela escondia.
A princípio, unidas pela dor, nos amparamos uma na outra mas com o
passar dos dias, os conflitos de gerações afloraram inevitá-vel e
fortemente.
Vovó Ana
tinha ideias pré-concebidas sobre quase tudo, incluin-do bailes, mini-saias, "Rock and Roll" e namorados.
Como era de se esperar, rebelei-me.
Quando vovó me comprava roupas comportadas, eu usava mini-saias
ou
jeans!
Quando me
proibia de usar maquiagem, eu levava tudo na bolsa e usava no banheiro da escola!
Fazia
pirraças todo o tempo, queria mostrar que era adulta e ninguém
devia me controlar. Queria liberdade!
Tenho
certeza, que naquela época eu transformei a vida de vo-vó Ana
num verdadeiro furacão. Mas, as coisas foram se
ajeitando com o passar do
tempo, e com a paciência e o carinho da minha avó, eu
aprendi a ceder de
vez em quando para manter a nossa paz. Ela cedeu muitas vezes também.
Vovó Ana era uma pessoa séria mas atenciosa e bondosa e eu só a via
rir com vontade, junto aos netos. Não era uma pessoa fria, pois cercava
de amor toda a família. Ajudava inúmeras obras
assis-tenciais mas não permitia que
comentássemos com ninguém.
Aos dezesseis
anos, no Natal de 1961, eu queria dar a minha avó, um
presente todo especial, algo que falasse do meu amor, do quanto ela
me havia
ajudado a superar a perda dos meus pais e também pedir perdão por
todas as
vezes que eu fiz uma verdadeira revolução em sua vida.
Encontrei num
antiquário o caderno mais lindo que eu já tinha visto!
Na capa havia um camafeu de madrepérola e em volta, violetas
pequeninas adornavam toda a capa.
Escrevi no caderno todas as palavras que eu não disse, todas as desculpas que eu não pedi e todo o amor e gratidão que eu
sen-tia. Colei fotos antigas comigo, vovó e meus pais, coloquei uma ro-sa entre as
páginas e assinei
meu nome: Mariana! Depois, botei tu-do em uma linda caixa desenhada com
rosas amarelas e amarrei com um grande laço de fita branca. Ficou
lindo!
O dia 24 de
dezembro começou com a chegada dos meus tios e primos
e a alegria contagiando a todos!
O espírito
do Natal pairava no ar! Enquanto vovó e as tias cuida-vam da
preparação da ceia, meus tios arrumavam o
quintal e o jar-dim com mil lâmpadas que piscavam alegremente.
Eu, minhas
quatro primas e dois primos, enfeitávamos com bo-las coloridas a árvore de Natal e arrumávamos os presentes e a de-coração da
casa.
Parecíamos
formigas agitadas cuidando de um formigueiro!
A noite
chegou e todos, elegantemente vestidos, nos sentamos à mesa.
Como sempre
fazíamos, demos-nos nossas mãos e fizemos uma oração
de agradecimento a Deus, por estarmos juntos e por todas as bênçãos
recebidas.
Fechei os
olhos e pedi a Deus, que meus pais estivessem em um lugar
bem bonito, de preferência, que tivesse um balanço em um
jardim, como o
que tínhamos em nossa casa.
A ceia
transcorreu animada e alegre e quando terminamos, fi-zemos a
tradicional troca de presentes.
Recebi muitos
presentes e também dei presentes para todos, mas deixei de propósito, o da minha avó por último.
Como que adi-vinhando, vovó
também deixou o meu presente por último.
Me abraçou
fortemente, depois abriu a delicada caixa que eu lhe havia dado.
Vovó Ana olhou o caderno com um brilho intenso nos olhos verdes, pediu licença e retirou-se para
o quarto. Eu sabia que ela queria ter as suas emoções sem que ninguém visse. Só então, abri o
presente de vovó Ana e com grande surpresa, vi que era um
caderno antigo, com a foto de uma jovem muito parecida com a minha mãe... Mas não podia
ser minha mãe, pois seus olhos
eram verdes e os da minha mãe eram castanhos, como os meus!
Estava
trancado. Tinha uma fechadura dourada e no
cantinho havia
uma corrente, com uma chave também douradas.
Era um diário! O diário de vovó Ana!
A jovem linda
na capa, era a vovó bem mocinha!
A emoção
tomou conta de todos, naquela sala. Meus tios
enxu-garam as
lágrimas disfarçadamente, ao perceber a falta que minha mãe fazia naquele
momento. A alegria e espontaneidade da minha mãe, sempre brincando,
sempre de bom-humor, nos fazia imensa falta! Todos
compreendemos que aquele
diário seria dela, se esti-vesse viva!
A saudade nos envolveu a todos naquele instante! Fiquei assus-tada e
confusa: eu não merecia aquele diário! Não havia feito nada para
merecê-lo!
Corri para o
meu quarto carregando aquele tesouro que vovó Ana havia guardado por tanto tempo e comecei a folhear aquelas
páginas amareladas
pelo passar dos anos.
Meu coração
batia descompassado e a emoção fazia minhas mãos tremerem!
O diário
começava pelo dia 4 de fevereiro de 1915. Vovó come-morava
15 anos.
Ali, naquelas
páginas, estavam registradas todas as dúvidas,
mágoas,
vaidades e rebeldias de uma adolescente, que como toda adolescente,
pensava ser o centro do universo!
Ali estava
também a jovem grávida que se entregara ao amor sem reservas e viu seu amado partir e partir também seu coração!
Ali estava o casamento com um jovem oficial do exército, que as-sumiu a
paternidade da minha
mãe e por amor a minha avó, nunca deixou que ninguém soubesse a verdade!
Vovô Paulo foi o homem mais amoroso que eu conheci e naque-le momento, eu
descobri que ele era também o maior coração do mundo!
Ali estava
toda a carga emocional que a jovem Ana sofre-ra. Vovó Ana
guardou aquele segredo por toda vida.
Ali estavam
também registrados todos os momentos felizes: o nascimento de cada um dos filhos e netos. Todos os Natais,
aniver-sários, e todas as
reuniões tão felizes em família, que vovó tanto apreciava!
Estava
também, toda a dor! A traição do homem que amara, a morte
dos seus pais, a morte da minha mãe, que morreu sem conhecer a verdade sobre o seu nascimento. A morte do vovô Paulo. Vovó Ana e vovô Paulo
tiveram
mais três filhos e todos tive-ram o mesmo amor.
Eles eram
para mim, o modelo de casal, sempre carinhosos e atenciosos um com o outro e com a família toda. Viveram felizes por 40 anos, quando
um câncer levou vovô Paulo.
Ali estava
toda a dor e o desespero da perda do companheiro a quem
ela amara por 40 anos. Ali estavam as lágrimas que vovó nun-ca deixou que ninguém visse!
Mas ali
estava também, toda a alegria e esperança que ela de-positava
na minha vinda para esta casa. A neta que ela amava e que compensaria a falta da filha que o destino lhe tirou!
Lendo aquele
diário, compreendi que eu não precisava dizer o quanto
eu a amava e nem pedir perdão: Ela sabia! Ela compreen-dia! Ela havia sido
uma jovem como eu! Seus cuidados às vezes exagerados, eram para
me proteger! Não queria que eu sofresse!
Passei a
noite acordada lendo aquele diário. Eu estava fascina-da pela
verdadeira história da minha avó.
Como vovó
poderia adivinhar que a filha que tanto amava, par-tiria antes de receber o seu diário? Cada linha foi escrita para
ela! Era para minha
mãe que vovó havia guardado todos aqueles senti-mentos. Todas as lágrimas
ali
guardadas.
Eram para
minha mãe, todas as emoções contidas naquelas pá-ginas! E
que orgulho eu sentia por tê-las recebido!
Eu sempre
amei a minha avó, mas naquele momento eu a com-preendia
muito mais! Era como se de repente, minha avó
tivesse deixado de ser santa e
se transformado em ser humano.
Em uma
simples mulher! Pecado e virtude.
Quando o dia
amanheceu, me arrumei e fui para a sala. Aos poucos a
família foi se preparando para o café e eu estava impa-ciente,
queria abraçar
minha avó, dizer-lhe tantas coisas.
Fui até seu
quarto e vovó estava sentada em frente ao espelho, seus
cabelos completamente brancos, delicadamente penteados contrastando com
os seus enormes olhos verdes. Estava linda, co-mo
sempre! Não precisamos dizer nada! Só nos abraçamos com for-ça, contendo as
lágrimas que queriam cair... Tudo foi dito naquele abraço!
O Natal
passou, outros Natais vieram e se foram. E os anos se sucederam.
Vovó Ana e eu
vivemos juntas, dividindo todos os momentos.
Quando eu me
formei, vovó Ana estava lá!
Quando me
casei, vovó Ana estava no altar, maravilhosa em seu vestido longo!
A cada
tropeço do meu caminho, era para vovó Ana que eu cor-ria! Eram os seus conselhos que me guiavam!
Vovó Ana nos
deixou em 1972, aos 72 anos! Morreu dormindo, calma e
serena como sempre viveu.
Nunca falamos
sobre os nossos presentes no Natal de 1961... Não foi preciso!
Os Natais nunca mais foram os mesmos, e a família aos poucos,
foi se
distanciando.
Restaram as
lembranças que moram nesta casa até hoje!
Guardei o segredo de vovó Ana, enquanto meus tios viveram... Não
queria que julgassem minha avó, por não ter lhes contado o seu
segredo.
Este ano
farei 60 anos, e percebi que não tenho muito tempo. Por isso, resolvi escrever a história de vovó Ana, como
um tributo a uma mulher
que foi para mim, um exemplo de coragem, amor, fé, bondade e
integridade.
Em algumas
ocasiões eu me olho no espelho e vejo refletida a imagem
da vovó Ana, de olhos castanhos... Aí, me lembro que sou eu,
dentro do espelho.
Em datas
especiais, eu sinto a presença dela junto a mim...
Sinto seu
perfume de alfazema e sei que ela está comigo!
Até breve,
vovó Ana, eu já estou indo.