Conto Romanceado

    Solteirão inveterado, aposentado, mil amores começados mil e um acabados,  romances vivenciados, romances diluídos no tempo e no espaço. De repente, já um quinquagenário, dono absoluto de todo meu tempo, sem saber o que fazer com ele. Filho único, herdei imóveis que estão alugados, recebo excelente aposentadoria, viajo anualmente para a Europa. Nada sou, além de um “bom vivant”.
    Em uma de minhas visitas a um amigo hospitalizado, vítima de um atro-pelamento, percorrendo um longo corredor rumo à enfermaria dos homens, passo pela quinta vez por um quarto com a porta aberta (sempre aquele). Por questão de educação, não costumo olhar para o interior dos quartos com portas abertas, mas dessa vez fui atraído de uma forma atípica. Recostada na cabeceira da cama, vejo uma linda mulher quarentona, segundo meus cálculos, baseado na experiência adquirida nesse mister de avaliação da faixa etária feminina.
    Estava sozinha com olhar perdido, como que procurando algo inexistente no vazio à sua frente. Inopinadamente ela me sorri com uma candura angelical como que suplicando por uma companhia, alguém para ouvi-la, para falar-lhe, para conversar....
    Pensando dessa forma, retribui o sorriso e como que imantado, pedi licença e adentrei o quarto, aproximando-me do seu leito. Feito isso, uma estranha sensação de ter subido aos céus invadiu todo o meu ser. Pareceu-me ter afinal achado a minha outra metade; sentia-me inteiro. Apresentamo-nos e perguntei se faltava muito para ela sair dali. A resposta soou-me melodiosa mas triste:
__Estou aqui aguardando o último dos meus dias... por que você demorou tanto a me ver?
__Como assim?
__ Já vi você passando várias vezes pelo corredor, sem olhar pra mim.
__Perdoe-me. Procuro ser discreto, não olhando para o interior dos quartos.
__E porque olhou desta vez?
__Esbarrei no seu sorriso e resolvi falar com você. O que está lhe impedindo abandonar este leito e sentir o calor do sol, o frescor de gotas chuvosas, ouvir o cantar dos pássaros, apreciar e sentir o olor das flores que estão lá fora a lhe esperar?
__Hum... Você fala como um poeta (tosse).
__Alguns dizem que sou, gostam do que escrevo e de me ouvir. Desculpe-me a insistência, mas você me parece tão bem...
__(Entre risos, pigarreando) Estou com um problema no cérebro e meu coração não agüentará uma anestesia para uma cirurgia em área perigosa e com duração prevista para mais de quatro horas. Nego-me a ser operada e prefiro seguir vivendo os poucos dias que os médicos me deram, sem correr riscos maiores. Também quero aproveitar o que pago pelo meu plano de saúde...(risos e tosse).
__Você está só, sem acompanhante?
__Sou viúva, sem filhos e já de há muito perdi contato com meus parentes no estrangeiro. Nenhum deles sabe de minha situação e nem quero que saibam. Prefiro continuar com meu Acompanhante Maior e Divino que é meu Amado Deus. Também nunca fui hábil em granjear amizades verdadeiras e duradouras.
    Lamentei seu estado, desejei-lhe melhoras, dei-lhe um carinhoso beijo na testa e pedi licença para poder visitar meu amigo na enfermaria. Ela segurou forte minha mão e fez-me prometer que a visitaria, sempre que viesse ao hospital ver o tal amigo. Respondi afirmativamente, dizendo que voltaria ama-nhã e retirei-me. Na volta da visita ao meu amigo, a porta do quarto estava fechada.
    Dia seguinte, passei numa floricultura e comprei uma rosa para Helo.
    Cheguei no 312 e lá estava a porta aberta, parecendo aguardar-me. Fui recep-cionado por aquele cativante sorriso. Pedi licença, adentrei o quarto, desejei-lhe boa tarde, dei-lhe um beijo na testa, abri a caixinha de celofane e ofereci-lhe a flor. Com os olhos marejados pediu-me para encher d’água um copo que estava na mesinha de cabeceira e nele mergulhou o talo da rosa.
__Você sabe ser galante. Obrigado pela lembrança carinhosa desta rosa.
__Bem, você merece todo o jardim, mas na impossibilidade, trouxe-lhe apenas esta flor.
    Rindo, conversamos longamente e, nesse dia, não cheguei a ver meu amigo. Havia acabado o horário de visitas.
    Essa rotina tornou-se diária, sempre às tardes. Meu amigo teve alta e eu, de três em três dias levava uma rosa para minha mais que amiga. Negava-me a deixar que a piedade tomasse conta de meu sentimento por ela, queria amá-la! Acho que a força de um mútuo amor fez Helo acreditar mais na vida. Nos dias que se seguiram, passei a encontrá-la sentada na “minha cadeira” e eu encos-tava-me na cama para conversarmos. Um dia, para surpresa minha, ela estava esperando-me de pé na porta do quarto. Abracei-a e nos beijamos instintiva-mente.
    As melhoras surpreendentes e aparentes de sua saúde, animou-me a pro-curar o médico dela para conversarmos sobre o seu estado clínico. Ele disse-me que, milagrosamente, a paciente tinha apresentado melhoras no último eletro-cardiograma e que a possibilidade de êxito tinha aumentado em trinta por cento. O que era animador.
    Dia seguinte, conversei com Helo tentando convencê-la a submeter-se à cirur-gia. Ela confessou-me que já estava pensando tomar essa decisão, uma vez que o tumor benigno tinha tendência a aumentar cada vez mais. Um dia, talvez afetasse uma região do cérebro que a impedisse o necessário discernimento para tomar uma decisão plausível.
__Eu decidi submeter-me à operação. Quero voltar a sentir o calor do sol, o frescor de gotas chuvosas, ouvir o cantar dos pássaros, apreciar e sentir o olor das flores que estão lá fora a me esperar.
    Fiquei boquiaberto, pois Helo, acabara de repetir “ipsis verbis” o que eu lhe dissera, quando de nosso primeiro encontro, ou primeira visita, melhor dizen-do.
__Concordo com você e aplaudo sua decisão, mas imponho certas condições: “Ficaremos noivos antes da cirurgia, nos casaremos logo após  você receber alta médica, e faremos nossa lua de mel no México, em Cancun – OK?”
    Sorrindo como só ela o sabe fazer, respondeu-me:
__Negócio fechado! Ela quis gargalhar mas um acesso de tosse impediu-a.
    No final da visita, fui acompanhado por ela até o elevador. Beijamo-nos demoradamente a ponto do elevador chegar e tornar a fechar a porta, seguindo vazio para outros andares. Helo chorava gotas de uma incontida emoção de felicidade. Brincando, disse-lhe para ter cuidado com o coração; desta vez rimos, sem tosses.
    Dia seguinte, antes de ir ao 312, voltei a conversar com o médico e o anes-tesista, principais responsáveis pela equipe que iria fazer a delicada micro-cirurgia. Optaram por esperar mais duas semanas, pois eram de opinião que a terapia de nosso amor estava fazendo verdadeiros milagres nas melhoras do quadro clínico da paciente. Seria feita uma trepanação craniana no local exato da neoplasia que seria dessecada a raios laser e retirada sem afetar pontos sensíveis que pudessem danificar algum dos cinco sentidos da paciente. Este era o cerne precípuo do objetivo.
    E lá fui eu para meu idílico namoro. Contei para ela sobre a decisão tomada pelos médicos, omitindo detalhes desnecessários e assustadores.
__Uma enfermeira me disse que eles vão raspar minha cabeça e enfaixá-la. Temo que, depois disso, você não vai mais me querer...
__Brincando, disse-lhe que iria comprar uma peruca, bem parecida com os seus belos cabelos loiros.
    Bom, as duas semanas passaram-se célere e o Grande Dia afinal amanhecera. Nesse ínterim, já estávamos ambos com as alianças do noivado comemorado em alegre e comedida festa da qual participaram alguns médicos e enfermeiras. Todos emocionados e espremidos no pequeno quarto.
    Cheguei ao hospital, o mais cedo que me foi permitido mas Helo já tinha sido sedada e levada para o centro cirúrgico. Na entrada, os médicos conversavam calmamente. O chefe da Equipe, já meu conhecido, entregou-me um envelope fechado endereçado a mim. Não quis lê-lo, temia que seu conteúdo aumentasse o meu estado de tensão nervosa, com alguma dolorosa despedida. Enfiei-o no bolso traseiro da calça e sentei-me em uma cadeira. Fui aconselhado a “dar uma volta” e retornar dali a umas quatro ou cinco horas.
    Seguindo o conselho, fui a um boteco nas imediações fazer meu desjejum, comprei um jornal mas não consegui concentrar-me nas notícias. Deixei-o “esquecido” no banco da praça em que fiquei sentado por séculos, em frente ao hospital. Olhei meu relógio de pulso e pareceu-me estar com os ponteiros para-dos; sacudio-o nervosamente.
    No hospital havia uma capela, na qual já tinha estado em companhia do meu amigo. Apressadamente atravessei a rua, sem muito cuidado com o trânsito intenso dos carros e dirigi-me àquela pequena casa de Deus. Prostrei-me de joelhos diante do pequeno altar e ergui uma súplica ao Divino Crucificado que lá estava à espera do meu rogar, pronto a atender-me.
    Onipotente Irmão Jesus Cristo, rogo que intercedas junto ao Nosso Pai para que permita que minha amada Helo saia incólume da cirurgia a que ora se submete. Restitua-lhe a saúde para que possa viver ao meu lado até o final de meus dias, até Sua derradeira chamada. Que assim seja. Amém!
    Quase cinco horas já haviam se passado. Enchi-me de coragem e fui em dire-ção ao Centro Cirúrgico. Lá estavam os médicos conversando do lado de fora e temi pelo pior. Sem que nada perguntasse, pois minha indagação morrera em meu peito, o chefe da equipe sorriu para mim e apertando-me a mão, deu-me parabéns atribuindo a mim o mérito do êxito alcançado.
__Você está de parabéns! Nunca tive um paciente com tanta vontade de viver. Por duas vezes estivemos com Da. Heloisa à beira do óbito, mas ela lutou bravamente pela sobrevivência e conseguiu! A sua Terapia do Amor foi o bu-sílis determinante de termos conseguido salvar uma vida que já considerá-vamos perdida. Agora, nada de visitas, ela vai permanecer uns dias no CTI e incomunicável.
__Sequelas, doutor?
__Acredito que não, mas haverá necessidade de uns meses de acompanhamento pós-operatório; depois então poderei garantir algo satisfatório. Milagrosamen-te o tumor apresentou-se bem menor do que  os eletroencefalogramas  mostra-vam.
    Fui pra casa e, exultante, aboletei-me numa cadeira à beira da piscina de meu apartamento duplex e, de olhar fixo no firmamento já estrelado, elevei uma prece de agradecimento ao Criador: “Deus, obrigado por ouvires o rogar deste Teu humilde servo. Conceda-me, desta feita,  um feliz desfecho com a cura total de minha querida Helo. Que assim seja, amém!”
    Quinze dias depois ela já estava no quarto e o médico, condescendentemente,  deu-me uns minguados e caridosos cinco minutos para uma visita. A fase crítica já está ultrapassada, o resto agora é com você e com Deus, disse-me o médico retirando-se.
    Ela não me viu, estava de olhos fechados. Achei-a mais linda ainda com aquele turbante branco. Fiquei admirando-a, sem nada dizer; apenas chorei. Foram os cinco minutos mais rápidos que passaram na minha vida.
__Tempo esgotado! O doutor pediu pro Sr. retirar-se, disse-me uma impiedosa e durona enfermeira.
    Para aproveitar melhor, fui andando de costas para a porta, com o meu olhar preso àquela que finalmente fez-me jogar âncora no meu insano e dispersivo navegar.
    Lembrei-me então do envelope que ela deixara pra mim antes da cirurgia e achei-me em condições, agora, de ler a carta de adeus. Com o coração batendo acelerado, abri o envelope e não sei o que senti. Um misto de decepção, indi-gnação, amor... Dizia-me: “Querido, no caso de minha morte, procure o meu advogado Dr. Fulano de Tal com escritório na Avenida tal número tal. Deixei-lhe instruções para o seu indispensável conhecimento. Beijos eternos de sua amada para meu amado. (a) Helo.”
    Táxi! Forneci o endereço ao motorista. Eram 15:20h. Bem antes das 16:00h já chegava ao escritório do advogado. Preparava-se para encerrar seu expediente. Pedi desculpas e mostrei-lhe o bilhete. Pediu para sentar-me e abrindo uma pasta, colocou sobre a mesa várias documentações. Eram certidões de proprie-dades de imóveis, ações, extratos bancários, etc... Olhei para ele e perguntei:
__O que isso quer dizer?
__É uma herança deixada pela minha cliente  para o sr., no caso do seu faleci-mento. Tudo foi devidamente documentado e testemunhado pelo tabelião em algumas manhãs passadas no hospital em que Da. Heloisa estava internada. Já que ela faleceu, podemos dar início aos procedimentos legais para transfe-rência de posse para seu nome. Basta o sr. fornecer-me o atestado de óbito para inserção nos laudos processuais e combinarmos o pagamento dos meus hono-rários.
__Doutor, obrigado mas ela está muito bem. Já foi operada e está em franca recuperação. Caso venha a acontecer o pior, voltarei aqui para tratarmos de fazer doações a asilos, creches, orfanatos, institutos de pesquisas oncológicas...
__ Mas existe um valor muito alto envolvido e...
__ Ótimo! Assim, poderemos ajudar mais aqueles que precisam!
    Jantei no meu restaurante preferido e brindei a mim mesmo, tomando um solitário champanhe. Nada como uma consciência tranquila, de bem com a vida e em paz com meu Deus Misericordioso.
    Ao abrir-se o portão do hospital, já lá estava eu pronto para entrar e rever meu eterno amor. O quarto estava fechado. Rodei a maçaneta, entreabri a porta furtivamente e vi o médico auscultando Helo. A megera da enfermeira percebeu e fez menção de bater com a porta na minha cara. O doutor olhou-me e fez sinal de que podia entrar.
    Ela estava desperta e me viu. Sorriu-me languidamente e seus olhos ganharam um brilho azul celeste ofuscante. Afinal, estávamos de volta, unidos pra sempre!
    Ao ficarmos sós, sussurrando, disse-me ao pé do ouvido: “vencemos!”
    Foi difícil, muito difícil não apertá-la em meus braços. Mas tal desatino, seria o mesmo que um elefante solto numa loja de cristais e finas porcelanas. Contive-me e beijei-lhe carinhosamente a boca sequiosa. Entre lágrimas rasguei a carta que me deixara e disse-lhe:
__Rumo a Cancun!



Fundo Musical: Como é grande o meu amor por você (Instrumental) - Eduardo Lages




Arte e Formatação:
AugustaBS

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