Não me deixes esquecer!



        _Querida, senta aqui ao meu lado, quero  te pedir um fa-vor, enquanto posso.
        _ Só um pouquinho então. Estou preparando o nosso desjejum e ainda nem fervi o leite e preparei as torradas.
        _Esta manhã acordei muito assustado. Custei a me lem-brar onde estava, quem era eu... Olhava fixo para o teto do quar-to, como que hipnotizado. Nada no meu pensamento, um vazio ab-soluto na capacidade de raciocinar! Pouco a pouco, meu cére-bro foi voltando a funcionar. Acho que foi um surto de amnésia. Foi apavorante!
        _Mas...
        _Escuta, deixe que eu fale o que preciso falar. Aquela tal do-ença que o doutor falou que não tinha como regredir nem cu-rar, mas que poderíamos desacelerar o desenvolvimento dela, está cada vez pior, conforme diagnosticado. Os remédios que ele recei-tou e os exercícios mentais não estão dando muito certo. O último livro que estava lendo, está guardado pois não mais me lembrava das palavras escritas na página virada, não mais consigo resolver “palavras cruzadas”, não uso mais o computador para fazer meus poemas, tenho movimentos cada vez mais lentos, sair sozinho nem pensar...
        _ Você tem que...
        _Ouça, deixe-me continuar. Eu sei como tudo vai termi-nar pra mim com essa tal de... como é mesmo o nome do que eu tenho?
        _ Alzheimer.
        _Isso mesmo! Começo a balbuciar palavras, inicio frases sem saber terminá-las, estou esquecendo o nome das pessoas, algumas nem sei mais quem são. Amiúde esqueço-me de onde vim, para onde vou, quem sou...
        _ Meu bem...
        _Psiu... só quero que, quando chegar o final da linha do meu raciocinar, aquele inevitável e derradeiro “apagão”, fales pra mim, em meu leito, todos os dias, baixinho, ao pé de meus ouvidos, co-mo tudo começou entre nós, como nos amamos, sobre nossos fi-lhos, nossos netos, que és minha esposa... não ligues se parecer que não estarei entendendo ou ouvindo... Fales! Apenas fales!!!
        _Não chore querido, vamos orar para que Deus não deixe isso acontecer!
        _Já está acontecendo! Não notas minha fala embolada? Não estás querendo enxergar a realidade? Preferes sonhar com o impos-sível? Neste momento exato não me lembro do teu nome, minha velha! Isso é normal?! Às vezes nem tenho certeza absoluta de qual seja o meu.
        _ Faça um esforço de memória que você vai acabar se lem-brando. O médico recomendou que eu não lhe ajudasse; você tem que exercitar seu cérebro!
        _Querida, aproveitando este meu hiato de lucidez, deixe-me fazer o tal pedido, antes que me esqueça qual é ele: Repi-ta sempre pra mim o TEU NOME. Não me deixes esquecê-lo! Jura?
        _ Juro!
        _ È a coisa mais preciosa que quero levar comigo e não quero que jamais se apague de minha memória. Sei que será ele um tênue liame entre eu e minha debilitada sanidade mental, cujo final aproxima-se célere. Se também dissesses que me amas, seria muito bom...
        _ Acalme-se, vamos enxugar nossas lágrimas e tomar nosso café, está bem?!
        _Vamos, minha velha, meu  amor, minha querida, razão do meu viver... qual é mesmo o teu nome? Esqueço, não me lembro... que dia é hoje? Quero orar antes de tomarmos o desjejum; dá-me tua mão e me ajudes a encontrar as palavras certas , até o “Que assim seja, Amém, graça  a Deus”. Por favor!


Ary Franco
(O Poeta Descalço)




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