Alandra desembarca no Rio de Janeiro, acompanhada de um casal amigo, de
inteira confiança de seus pais. A viagem marítima tinha sido bem
confortável com estada de quatro dias na Bahia, visita à Boa Terra
adorada por todos.
Oriundos de Zamora na Espanha, educação rígida, arraigados a tradições
de família, todos se deliciavam com aquela viagem tu-rística, com
exceção de Alandra que, quando a bordo, em sexo não consensual, foi
violentada em seu camarote invadido por um des-conhecido. Com lenço
embebido em clorofórmio foi imobilizada e teve sua virgindade imaculada.
Vítima de sua timidez provinciana, vergonha, temor de escândalo que
comprometesse a alegria de seus acompanhantes, medo da falta de
credibilidade ao narrar o acontecido, guardou pra si o triste
acontecimento. Por trás de seus sorrisos morava aquela desdita a ocupar
seus pensamentos.
Os sinais evidentes de sua gravidez já haviam sido manifesta-dos com o
não acontecimento da menstruação nos dias esperados. Sem ter com quem
dividir seu momento dramático, sabia que ja-mais poderia retornar e
contar para seus pais sobre o acontecido. Desesperada, tomou a decisão
de não voltar com o casal e perma-necer no Brasil. Sabia dos sofrimentos
que a esperavam mas pare-cia-lhe a única solução. Também não queria
voltar a viajar naquele navio, de volta à Espanha, receando repetição do
acontecido.
Forçar um aborto estava fora de cogitação, por convicções re-ligiosas e
por nutrir antecipado amor aquele filho que se formava em seu ventre.
Jamais cometeria ato tão abominável, custasse o que custasse dar a luz
ao ser que lhe foi confiado por Deus.
Contou para seus responsáveis a tragédia ocorrida e que fos-sem
portadores do pedido de perdão aos seus pais. Atônitos com o que
acabavam de ouvir, renderam-se aos argumentos de Alandra e deram-lhe
dinheiro suficiente para suas necessidades por alguns dias. Antes do
navio zarpar, pegou sua mala com roupas e desapa-receu nos confins
daquela terra hospitaleira mas totalmente estra-nha para ela. De porta
em porta, oferecia seus serviços como em-pregada doméstica, pedindo como
paga apenas um teto e comida.
Uma família condoída com ela, sem saber de sua gravidez, deu-lhe guarida
e trabalho. Poucos meses se passaram e não mais pôde disfarçar o
crescimento de sua barriga. Foi renegada sua per-manência no lar que a
abrigara e em vésperas do parto acontecer, estava de volta às ruas. Isso
obrigou-a a procurar um hospital pú-blico para ter seu filho, ao qual
pretendia dar o nome de Juan Pablo caso fosse homem.
Realmente nasceu um belo neném com paternidade desco-nhecida. Quatro
dias após o parto, o hospital deu-lhe alta e teve que voltar às ruas.
Com seis dias de nascido, com o coração partido e sem ter como
alimentarem-se, já que o leite materno lhe era es-casso, Alandra tomou a
drástica decisão de desfazer-se do filho. Ninguém lhe dava emprego com
um recém-nascido no colo. Enro-lou-o carinhosamente num lençol que
ganhara do hospital e deposi-tou-o de madrugada na porta de uma mansão
previamente escolhi-da. De longe, acompanhou com olhos lacrimosos, Juan
Pablo ser levado para dentro por uma jovem senhora, logo ao amanhecer. O
casal que ali residia era estéril, não tinham filhos e a criança caída
dos céus, certamente iria alegrar seus dias e aumentar a razão do seu
viver.
Quatro anos depois de novos empregos pelas imediações como babá, Alandra
vestiu-se com a melhor de suas roupas, encheu-se de coragem e tocou a
campainha da mansão em que deixara seu filho. Identificou-se como
experiente babá e foi aceita após informações abonadoras por escrito, da
última patroa que deu como referência.
Agarrado à saia da dona da casa estava Juan que a olhava com ternura e
justificada empatia, mas sem saber obviamente de quem se tratava aquela
estranha. Da. Magda apresentou-o à sua nova babá e ele correu
instintivamente para abraçá-la. Pronto, acabara ela de ser aprovada no
novo emprego e função! O menino gostara dela!
Alandra, não conseguindo se conter, ajoelhou-se e abraçou emocionada
aquela linda criança e chorou. A nova patroa mostrou-se surpresa e,
intrigada com aquele excesso emocional, resolveu fazer indagações
adicionais, em cujas respostas ela se saiu muito bem. Disse ser
espanhola e mentiu ao dizer ser recém-chegada e estar em período de
adaptação ao novo país em que escolhera para viver.
A Família Avilla era abastada e tinha muitos empregados. Mo-torista,
jardineiro, governanta, faxineiras, cozinheira e agora ela como babá. A
afinidade de Juan com ela era infinitamente surpre-endente e foi num
crescendo que a patroa contou ao marido de sua suspeita. Ela seria a mãe
biológica do menino. Por cautela e ciú-mes, resolveram dispensar os
serviços de Alandra.
Assim foi feito quando a criança estava no colégio e, embora o choque
tenha sido arrasador, a babá conseguiu dissimular muito bem. Deixou o
endereço no qual ela poderia ser encontrada na eventualidade do casal
resolver reconsiderar aquela decisão. Era para onde ela retornaria; seu
último emprego que ficou à sua dis-posição para o dia que quisesse
regressar.
Quando Alexandre, nome com que foi batizado, depois de legalizada a
adoção, voltou para casa e não encontrou a babá, caiu em crise de choro,
parou de se alimentar, teve febre, adoeceu e deixou de frequentar o
colégio. O médico que estava acompanhan-do o quadro clínico do pequeno
paciente, ao saber do drama ocor-rido, recomendou a volta imediata da
babá, como fator precípuo para restabelecimento da saúde do menino.
Da. Magda, de comum acordo com o marido, chamou de volta Alandra que
retornou de imediato. Pressionada, confessou ser a mãe de Juan Pablo,
melhor dizendo Alexandre. Ficou convenciona-do que, se algum dia o
menino tomasse conhecimento de tal fato, ela seria entregue à polícia
sob a acusação de abandono de menor incapaz, com pena prevista em lei e
que nunca mais iria tornar a se aproximar de Alex, ainda que houvesse o
risco do menino vir a sofrer bastante com a separação.
Havia uma dependência enorme para empregados nos fundos da mansão, mas
Alandra dormia no mesmo quarto de Alex. Prepa-rava-o para ida ao
colégio, levava-o e buscava-o no carro da famí-lia dirigido por Jarbas,
motorista dos Ávilla há mais de uma déca-da.
Acordo respeitado, os anos passaram-se e Alandra, com re-ceio das
represálias caso seu segredo fosse revelado, viu seu filho crescer, cada
vez mais independente de seus cuidados, mas man-tendo o mesmo amor por
ela. Passou ela então a ocupar a depen-dência destinada aos empregados.
Viu-o cursar a Universidade, for-mar-se em engenheiro arquiteto,
casar-se e ser pai de seus netos. Uma vez dis-se para Alandra: “Sabe,
Bá! Quando começo a arquite-tar uma ponte, procuro sempre fazê-la bem
forte, imaginando que você está no outro extremo à minha espera, de
braços abertos. Essa é a razão do meu sucesso!”.
Nesse período, após decorridas duas décadas, Alandra arris-cou escrever
uma carta para seus pais mas não obteve resposta. Meses depois recebeu a
visita de seu irmão mais velho que viera buscá-la de volta à Zamora.
Seus pais tinham morrido, mas antes, a haviam perdoado. Alandra, sem
entrar em detalhes, chorando muito, disse-lhe apenas que jamais poderia
voltar, Entre lamentos, alegrias e abraços se despediram sabendo ser um
adeus para sempre e Ramon regressou sozinho à sua terra natal, não
logrando seu intento.
Quando adulto, Alex reclamava da Bá fazer suas refeições na cozinha e
achava que ela deveria participar da mesa principal da Família. Como
isso foi peremptoriamente negado, sempre que po-dia atrasava-se na
universidade para o horário do almoço e comia com sua Bá lá na cozinha.
Sempre foi chamada por ele carinhosamente como Bá e ela o chamava de
Pablito, alegando ser apenas um apelido por ela inven-tado. Quando
nasceu o segundo filho de Alex, ele conseguiu com a Da. Magda
autorização de levá-la para sua casa para ser babá de seus filhos. E lá
foi Alandra carregando sua dadivosa cruz, continu-ando como babá de seus
netos. Para isso, renunciou à função de governanta dos Ávilla a que foi
promovida após o casamento de Alex e sua consequente mudança para outra
suntuosa casa.
Por razões profissionais Pablo viajava muito e, na maior parte do tempo,
ficava ela com a “nora”
(sua patroa),
cuidando prazero-samente das crianças (seus
netos). Ironia
de um destino que ela re-signada aceitava, sem reclamos. Era a melhor
babá (e sogra)
do mundo!
Deixou uma carta para Pablito dizendo sobre sua conta bancária deixada “in
totum” para
ele. Era a soma de todos os salá-rios recebidos durante os anos
trabalhados para os Ávilla. Tal missiva foi confiada à Da. Magda para
ser a ele entregue após sua morte.
Envelheceu e morreu levando com ela o segredo da amargura de conviver
com seus filho e netos, sem jamais poder identificar-se como mãe e avó.
Com o dinheiro deixado por ela, Alexandre man-dou construir um túmulo
para Alandra e na lápide ficou escrito:
REPOUSE EM PAZ
MINHA QUERIDA “BÁ”
Pablito
Ary Franco
(O Poeta Descalço)
Fundo Musical: Sentiments - Ernesto Cortázar