Dupla Partida

 


        Vim para este leito hospitalar classificado como paciente ter-minal. Não entendo estes quase dois meses decorridos e ainda es-tar aqui vivo, com uma parafernália de aparelhos embutidos em mim.

        Pra quê? Virem todos os dias, no horário destinado às visitas aos internados na enfermaria e verificarem se continuo sobrevi-vendo à doença inclemente que me corrói em sua devoradora me-tástase? Sabem que estou num caminho sem volta, nenhuma possi-bilidade de melhorar, escravo de doses maciças de morfina para atenuar dores que, sem ela, seriam insuportáveis ao mais forte dos seres humanos.

        Já ultrapassei em muito a média de vida do ser humano, nada mais posso fazer em benefício do próximo, sou um estorvo aos meus descendentes. Por que não me deixam partir? Certamente por amor, mas um amor que me machuca, me desespera, me agrilhoa a esta massa material que se putrefa pouco a pouco.

        Numa dessas visitas de um sábado qualquer, disseram-me que minha companheira inseparável estava muito mal de saúde. O ve-terinário não conseguia fazê-la comer cousa alguma e apenas limi-tava-se a beber água. Estava esquálida e fraca, só vivia pelos can-tos da casa. Ela, que sempre foi minha fiel guardiã e companheira, ativa e vigilante.

        À distância diagnostiquei seu mal: saudades! A mesma sauda-de que eu tinha dela!

        __Doutor, antes de ir-me definitivamente, queria suplicar-lhe um favor:

        __Diga! Disse-me ele retirando o auscultador dos ouvidos.

        __Gostaria de ver minha cadela. Afagá-la...

        __Impossível! Não é permitida a entrada de animais no Hospi-tal (pensei: e como estamos nós aqui dentro?)

        Quando virou as costas a mim, balbuciei, chorando:

        __Doutor eu iria ao jardim e lá poderia encontrar-me com ela, ainda que por breves instantes.

        __Impossível! Isto custar-lhe-ia a própria vida e não posso as-sumir tal responsabilidade!

        __Doutor! É meu último pedido, último desejo, atenda-o pelo amor de Deus, se é que o Sr. inda o tenha em seu coração!

        Virando-se de frente pra mim, deu um suspiro e disse:

        __Se seus filhos assinarem um documento responsabilizando-se, eu deixarei por poucos minutos – OK?!

        Passei a mão no celular e já dois dias depois a autorização es-tava devidamente sacramentada por todos. O grande dia ficou marcado para domingo, nos jardins do Hospital, dia em que o mé-dico estaria de plantão.

        A concessão deu-se, após o término do horário das visitas, sob sua supervisão com a retirada dos aparelhos, menos o soro e dosa-gem de morfina (acho que foi aplicada em dose maior, pois jamais tinha me sentido tão bem). Apenas aqueles tubos enfiados nas na-rinas pareciam fazer-me certa falta ao respirar. Dois enfermeiros colocaram-me em uma cadeira de rodas e lá fui eu rumo aos jar-dins do Éden!

        Em lá chegando, a meu pedido, fui transferido da cadeira para um dos bancos. Fiquei meio torto, caído para a direita mas os enfermeiros colocaram-me na posição correta. Enquanto aguarda-va, meu coração batia forte, acelerado. Meus Deus, dais-me mais um tempo, eu vos rogo!

        Poucos minutos após adentram dois carros, um deles trazendo a minha amada cadela. Não saiu pelas próprias patas. Vinha carre-gada por um dos meus netos. Parecia dormir. Colocada deitada ao meu lado no banco, ela farejou-me, seus olhos de foscos passaram a brilhar.

        Pedi que todos se afastassem, deixando-nos a sós. Balbuciei seu nome. Ela ajeitou sua cabeça em meu colo e eu, num esforço sobre-humano, inclinei-me aproximando-me mais dela. Passou a lamber-me o rosto e até minha cabeça isenta de cabelos, em con-sequência das quimioterapias. Eu abracei carinhosamente seu dor-so bastante emagrecido (antes ela pesava 51kg, afinal era uma legítima Rottweiler). Ela virou-se de costas, patas para cima, olhando-me diretamente nos olhos. Chorava baixinho, sem ganir, parecia querer dizer-me algo. Talvez: por quê você sumiu, por quê me deixaste? Logo em seguida, saiu de sua boca um ronco forte semelhante a um trem chegando à estação e não mais se mexeu. Estava morta!

        Mergulhado em prantos, a morfina foi incapaz de segurar a dor sentida em meu coração e ele finalmente parou, aliado à minha rarefeita respiração. Meu corpo pendeu sobre o dela e lá ficamos, ambos unidos como deveríamos terminar.

        Curiosamente, liberto da carcaça, eu vi meus amados descen-dentes chorando e os enfermeiros acorrerem para levantar meu corpo e colocar-me de volta na cadeira de rodas. O corpo de Bella foi levado de volta para o carro e eu satisfeito pela morte me ter chegado de forma tão suave e proporcionando-me tamanha alegria de sucumbir junto daquela que, até o último suspiro, fiel me foi!

 

“Quando disseres que não gostas de animais,
lembra-te que és um deles, o pior de todos.”


Ary Franco
(O Poeta Descalço)




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