As
Grandes Instituições Religiosas
Do Brasil Colonial E Imperial
Tiveram Negros Escravizados — E Muitos |
Pesquisas
recentes apontam para um número de escravos muito acima da média do
que havia nas grandes propriedades rurais, práticas de incentivo à
procriação para aumentar a quantidade de mão de obra e até mesmo uma
tabela de preços para quem quisesse comprar a alforria — com
critérios específicos para precificar cada ser humano.
Pessoas
Escravizadas |
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Mosteiros
e conventos tinham pessoas
escravizadas
que eram
obrigados a
professar a fé católica,
participando
de missas, momentos de orações
e
recebendo
os sacramentos |
© Arquivo Nacional / Domínio
Público |
Os escravizados
mantidos por mosteiros e conventos também eram obrigados a professar
a fé católica, participando de missas, momentos de orações e
receben-do os sacramentos.
Os que se
rebelavam quanto à conversão costumavam ser punidos com castigos “de
forma exemplar”
ou seja, com intensidade suficiente para convencer os demais a não
repetir gestos de desobediência.
De quebra,
a luta pela aquisição de liberdade — ou seja, a compra de uma carta
de alforria — costumava ser mais difícil para um escravo de ordem
religiosa do que para alguém que estivesse sob o jugo de um senhor
leigo.
Por outro
lado, a libertação dos escravizados por mosteiros e conventos
ocorreu 17 anos antes da assinatura da Lei Áurea, em 1871.
Autor do
recém-lançado livro Escravos da Religião (Ed.
Appris),
pesquisador na Universidade Federal Fluminense (UFF)
e idealizador do podcast
Atlântico Negro, o historiador
Vitor Hugo Monteiro Franco revira arquivos da Ordem de São Bento desde 2014.
O material
foi tema de sua iniciação científica, de sua monografia de conclusão
de curso, de seu mestrado e, agora, está sendo esmiuçado em seu
doutorado.
“Uma
das principais descobertas foi o próprio termo
'escravos
da religião'”,
conta ele.
“Não
foi um termo que eu criei.
É o termo
na época que encontrei em livro de batismos.
Foi um
choque para mim.”
Na
ocasião, ele estava analisando os registros dos nascidos no século
19 em pro-priedade rural mantida pelos beneditinos na Baixada
Fluminense, a Fazenda São Bento de Iguassú.
“Na
hora de qualificar os pais, o monge não os qualificava como
'escravos
da Ordem de São Bento',
mas sim como
'escravos
da religião'.”
Para o
pesquisador, residia aí uma diferença fundamental entre o modo de
vida dos escravos mantidos por instituições religiosas: o fato de o
senhor não ser uma pessoa, mas sim uma entidade.
“Parece
simples, mas não é.
A situação
geral da escravidão no Brasil é de escravos privados, de senhores
leigos.
No caso
dos 'da
religião',
eles não pertenciam a um monge específico, eram de propriedade
coletiva.
E isso
teve repercussões na vida dessas pessoas para sempre, porque
influenciava na forma, no dia a dia deles”,
diz o historiador.
Franco ressalta que o cotidiano desses negros escravizados estava “regulado”
pelos hábitos religiosos do catolicismo e da vida monástica.
“Por
mais que a sede dos religiosos estivesse no centro do Rio e a
fazenda na Baixada Fluminense, sempre havia um monge cuidando de lá.
Era o
chamado padre fazendeiro”,
contextualiza.
“Ele
fazia o trabalho espiritual: batizava as pessoas, casava-as, sepultava-as.
Os
beneditinos eram um tipo de senhor que conhece muito bem sua
escravaria, anotando tudo em muitos detalhes.”
“Os
monges conheciam cada momento, cada fase da vida dos seus
escravizados.
Por mais
que as propriedades fossem enormes, eles tinham o controle
admi-nistrativo sobre aquelas pessoas, ao contrário dos senhores leigos, que muitas vezes tinham um contato muito pequeno com os
escravizados”,
compara.
“Isso
dava (aos
religiosos)
um poder muito grande.
Ser 'escravo
da religião'
significava ter sua vida controlada por uma instituição religiosa”,
acrescentou Monteiro Franco.
Em 1871, somente os beneditinos tinham um total de 4 mil escravizados |
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© Arquivo Nacional / Domínio
Público |
E não era um
rebanho pequeno para ser controlado.
De acordo
com as pesquisas de Franco, quando os religiosos emanciparam seus
escravos, em 1871, somente os beneditinos tinham um total de 4 mil
escravizados.
“Eram
três as principais ordens religiosas escravistas do Brasil: os
jesuítas,
os
beneditinos
e os
carmelitas.
Em menor
escala, os franciscanos também”,
elenca.
A primazia
da Companhia de Jesus foi até o século 18.
Em 1759,
contudo, os jesuítas foram expulsos do Brasil.
E aí os
beneditinos assumiram essa posição.
Durante o
século 19, período analisado pela pesquisa de Franco, a Fazenda de
Iguassú costumava ter um número constante de cerca de 130 escravos.
“Destoava
muito das outras fazendas da região, em que havia em média 10
escravos por senhor”,
afirma o pesquisador.
Mas essa
propriedade não era a maior das beneditinas.
Em
Jacarepaguá, a fazenda dos religiosos tinha mais de 300 escravos.
Em Campos
dos Goitacazes, 700.
“E
essas são só as três maiores propriedades dos monges de São Bento”,
diz Franco.
“É
muita gente.
Era a
principal ordem escravista do Brasil.
Eu nem
considero a Ordem de São Bento uma grande proprietária
[de
escravos].
Era uma
megaproprietária, estava acima dos grandes proprietários, era a
elite da elite.”
Uma maneira de
garantir a abundância de mão de obra escrava era o incentivo que os
monges davam para que as escravizadas tivessem muitos filhos.
“As
mulheres que procriavam pelo menos seis filhos conseguiam
privilégios, tais como não realizarem trabalhos
'penosos'”,
conta o historiador
Robson Pedrosa
Costa,
autor do livro
Os Escravos do
Santo (Editora
UFPE) e
professor no
Instituto Federal de Pernambuco e na Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE).
A partir
de 1866, os benefícios às mães de pelo menos seis filhos passaram a
ser a liberdade gratuita — desde que elas “estivessem
devidamente casadas”,
pontua o historiador.
Mapa que situa a propriedade dos beneditinos
na Baixada Fluminense |
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© Reprodução/ ‘Escravos da
Religião’ |
Para os monges
senhores de escravos, religião era uma coisa, negócios eram outra.
Pelo menos
é o que fica claro em outro achado do historiador
Monteiro Franco:
nos registros de batismo, a maior parte das crianças era registrada
como sendo filho de mãe solteira.
Havia uma
razão econômica para isso.
“Até
pouco tempo atrás se acreditava que as ordens religiosas de maneira
geral incentivavam o casamento por causa do valor cristão do
matrimônio e também para um fator de incentivo da reprodução da
comunidade escrava, do ponto de vista senhorial”,
pontua o pesquisador.
“Mas
o que encontrei foi a maior parte das mulheres como mães solteiras.”
Segundo
ele, isso não significa que essas mulheres não tivessem
relacionamento estável ou que vivessem na promiscuidade.
A questão
chave estava na propriedade da criança que nasceria dessa gravidez.
Em caso de
mãe e pai sacramentalmente unidos, poderia haver alguma discussão se
o filho pertenceria ao senhor da mãe ou do pai.
Então, os
beneditinos preferiam não oficializar relações estáveis quando as
mulheres de sua fazenda tinham homens de fazendas vizinhas.
Quando
ambos eram da mesma propriedade, aí sim, o sacramento do matrimônio
era concedido.
Tais
condutas fizeram com que os beneditinos conseguissem manter um
grande número de escravos no século 19, mesmo com a dificuldade,
para os latifundiários escravocratas, decorrentes da
Lei
Eusébio de Queirós
— que, a partir de 1850, proibiu o tráfico negreiro.
“Estas
instituições
[religiosas]
construíram, ao
longo dos séculos, grandes corpo-rações, muito semelhantes a grandes
empresas pautadas em um complexo sis-tema organizacional”,
afirma Costa.
“No
caso dos beneditinos, foi possível entender que a instituição foi
capaz de construir um sistema de gestão eficiente e duradouro, que
garantiu o forneci-mento de escravos para as suas propriedades sem
recorrerem ao tráfico.”
“Claro
que eles compraram escravos no século 19, mas foram poucos”,
completa o professor.
A
estratégia consistia em incentivar a procriação e a tentativa de
manutenção das famílias.
“Eles
evitavam ao máximo vender seus escravizados, principalmente a
separação de famílias, uma instituição sagrada para os monges.
Apenas os
cativos considerados
'incorrigíveis'
deveriam ser vendidos.
Mas eles foram poucos.
As
famílias escravizadas eram extensas e duradouras.
Isso
garantia a perpetuação do quantitativo de escravos”,
explica Costa.
Prática
relativamente comum entre escravizados no
Brasil,
a compra da liberdade era mais difícil para um “escravo
da religião”.
Enquanto
no caso daquele que servia a um senhor leigo bastava convencê-lo —
com acordos e, muitas vezes, um valor em dinheiro — no caso dos
monges era preciso passar por um processo formal.
Escravos
da Religião |
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O historiador Vitor Hugo Monteiro
Franco
revira arquivos da Ordem de São Bento
desde 2014 - foi assim que en-controu o termo
“escravos da religião” |
© Reprodução |
Aquele que
pleiteava a alforria precisava fazer uma petição aos religiosos.
Não havia
negociação direta.
“Estamos
falando de uma propriedade institucional”,
lembra o historiador Franco.
“Não
era simples.
Os monges
liam a petição e colocavam para votação, usando favas pretas para
marcar as negativas e favas brancas para sinalizar positivo.”
A partir
da década de 1850, a Ordem de São Bento criou uma tabela de preços
para casos de alforria.
Pelo
documento, o preço dos escravizados variava conforme saúde, idade e
sexo.
“O
valor ia aumentando de acordo com a idade até a fase mais produtiva.
A partir
da adolescência, eles passam a entender que um homem pleno de saúde
vale mais do que uma mulher”,
explica Franco.
“Esse
documento mostra com todas as letras qual a posição de um senhor de
escravos: transformar as pessoas em commodities”,
define ele.
Embora haja uma
corrente que acredite que a escravidão impetrada por reli-giosos
fosse mais branda do que a conduzida por senhores leigos, pelos
valores cristãos supostamente respeitados, Franco não compactua com
essa ideia.
Primeiramente porque é enfático ao dizer que a privação da
liberdade a que um escravo está sujeito já é, por si só, uma grande
violência.
Além
disso, ele encontrou registros que atestam atos de crueldade.
“Tem
um caso, em um fazenda de Cabo Frio, também dos beneditinos, em que
dois monges foram presos depois de matarem, de tanto espancar, um
escravi-zado.
Isso no
século 18”,
conta ele.
“Olha
o nível da violência.”
Ele também
se deparou com relatos de fugas em que o escravo, uma vez capturado,
era submetido a um “castigo
exemplar”.
O mesmo
acontecia para quem não demonstrasse seguir a fé católica.
“Há
um registro de uma visitação realizada por um monge
(encarregado
de vis-toriar os trabalhos do padre fazendeiro),
que dizia que era bom que o mesmo não descuidasse do espiritual dos
escravos, para ver se eles estavam seguindo os preceitos do
cristianismo”,
aponta Franco.
“E,
verificando que não estivessem seguindo, que fossem punidos
exemplarmen-te.
Se não se
redimissem, que fossem vendidos.”
Mas em que
trabalhavam os “escravos
da religião”?
Boa parte
deles fazia um trabalho semelhante a qualquer outro escravo de
propriedades rurais.
As
instituições religiosas tinham muitas terras e nelas cultivavam cana
de açúcar e outros insumos valiosos para a economia da época.
Quem fazia
esse trabalho era a mão de obra escrava.
No caso
dos religiosos, contudo, havia também muitos escravos com trabalhos
especializados.
Carpinteiros, ferreiros, oleiros, sapateiros, boticários,
enfermeiros.
“Além
daqueles que serviam os monges no claustro: botavam a comida na
mesa, tocavam o sino da capela, seguravam o livro na hora da missa,
e por aí vai”,
diz o historiador Franco.
Nesse
sentido, a Ordem de São Bento investiu em capacitação.
Como eles
tinham grandes propriedades com necessidades específicas, passaram
a treinar os escravos que pareciam mais aptos a trabalhos
específicos.
“Para
eles, era melhor fazer isso do que pagar um sujeito livre para
desempenhar esses papéis”,
afirma.
Esses que
tinham ofícios especializados não eram inimputáveis a sofrerem
cas-tigos.
“Encontrei
um registro de um monge que se dedicava a ensinar ferraria a
escra-vos.
E ele era
tão violento que acabou sendo deslocado de posição”,
exemplifica Franco.
Desempenhar essas funções especiais, por outro lado, conferia
prestígio dentro da comunidade escrava.
E muitos
desses profissionais acabavam conseguindo fazer trabalhos “por
fora” e,
assim, juntar dinheiro para, no futuro, comprar a alforria.
As ordens
religiosas libertaram seus escravos ao longo de 1871, ou seja, 17
anos antes da Lei Áurea.
A primeira
instituição a fazer isso foi a Ordem de São Bento.
Aos
poucos, os beneditinos foram seguidos pelos demais religiosos.
Segundo os
pesquisadores, esse movimento era resultado de um embate da Igreja
Católica com o Estado.
“Havia
uma relação de tensão entre Estado e as ordens religiosas”,
pontua Franco.
“Estava
ocorrendo um embate político em que cada vez mais a classe política
e outros setores da elite brasileira acreditavam que os religiosos
tinham proprie-dades demais, escravizados demais e eram
improdutivos.
Por outro
lado, o Estado via a chance de se apropriar das propriedades dos
reli-giosos.”
Ao
libertar os escravos na mesma época da promulgação da Lei do Ventre
Livre, as instituições católicas geraram uma comoção nacional.
“A
abolição não significa simplesmente a questão humanitária por trás
da liber-dade do indivíduo, mas também uma questão de ordem econômica
sobre aqueles que você teria de estar empregando”,
afirma o historiador
Philippe Arthur dos Reis, pesquisador na
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
“O
custo de manutenção desses indivíduos, em geral era muito mais
dispendioso ter os escravos do que importar pessoas de fora e pagar
salário”,
acrescenta.
O
historiador Costa lembra que desde a Independência, em 1822, “várias
vozes começaram a sugerir que as ordens religiosas eram instituições
inúteis e péssimas administradoras de seus bens”.
“Quando
os debates sobre a abolição se acirraram a partir de 1865, novamente
as ordens, consideradas grandes escravistas, foram colocadas na
berlinda.
Uma lei de
1869 instituiu que as instituições religiosas deveriam libertar
todos os seus escravos em um prazo de 10 anos.
Até lá,
poderiam libertá-los ou criar contratos de prestação de serviço por
tempo determinado”,
detalha o historiador.
“Prevendo
uma maior intervenção do Estado e do Parlamento, a Ordem de São
Bento do Brasil já havia se antecipado, decretando a liberdade de
todo as crianças nascidas a partir do dia 3 de maio de 1866”,
diz ele.
Essa
medida teve impacto nas autoridades.
O
Imperador Dom Pedro II
(1825-1891)
presenteou o então abade geral com uma caixa de ouro cravejada de
diamantes.
Já o
deputado
Tavares Bastos
(1839-1875),
voz abolicionista, declarou que o gesto era “um
ato generoso e solene”
— e que deveria ser seguido pelas demais instituições religiosas.
Em 1871
veio a libertação total dos “escravos
da religião”.
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