Sublime Natal (Conto)

 

 

É Noite fria, caminho em passos trôpegos por enfeitadas calçadas em busca da guarida de uma protetora marquise.

É Natal!

Ouço vozes entoando alegres cânticos, gargalhadas das quais não participo e, por cautela, passo ao largo das casas em que a data é comemorada.

Por companhia tenho apenas o isolamento da constante solidão que me cerca, me sufoca, moradora inclemente no meu peito arfante e cansado.

Sou um mísero e renegado morador de rua.

Já tive casa, família, já fui amado, já amei até demais.

Hoje nada mais me resta, deixado  pelo meu inclemente destino.

Por respeito a Deus, jamais apressarei minha morte, mas ao alvorecer de cada dia, oro que ela venha me buscar.

Atrevo-me a parar e apreciar pela janela de uma casa a festa que fazem, mas logo sou avistado e afugentado aos gritos de “fora, vagabundo!”.

Aceito o tratamento pois realmente sou um excluído.

Ninguém  me aceita para trabalhar por razões obvias: an-drajoso, mal cheiroso, idoso demais e outras mais desqua-lificações desabonadoras.

Antes de “recolher-me” passo pelas caixas coletoras de lixo e sempre acho algumas sobras que amenizam minha fome.

Desta vez dei sorte: alguém por razão desconhecida (talvez tenha caído ao chão), jogou fora um sanduíche de mortadela, quase inteiro.

Agradeci a Deus e sentei-me sob uma marquise para sabo-reá-lo.

De pé, parecendo esperar-me, tinha um homem beirando seus trinta e três anos de idade, alto, barba e cabelos compridos, olhos brilhantes e com trajes não condizentes com a época atual.

Pareci reconhecê-lo mas não me lembrava de onde.

Quando ia dar a primeira mordida no sanduíche encontra-do, ele dirigiu-se a mim com voz doce e suave.

Demorastes a chegar, Pedro...

Quem é você e como sabe meu nome?

Sou teu irmão, enviado pelo nosso Pai e vim para te aju-dar.

Por coincidência, comemoram hoje meu ani-versário...

Puxa, meus parabéns!

Como presente, você aceita a metade deste sanduíche?

É tudo que tenho e que posso lhe oferecer.

Não, obrigado!

Estou bem alimentado e admiro teu nobre gesto oferecen-do-me a metade de tudo que possuis.

Não deves todas as manhãs pedir a própria morte, pelo contrário, peça vida longa pois, sem o saber, tens ainda uma nobre missão a cumprir.

Uma vida ainda salvarás e de todos os pecados estarás redimido.

Teu atual sofrimento será regiamente recompensado quando fores recebido por Nosso Pai.

Creia! Não perca tua preciosa fé.

Mantenha-a em teu coração até que chegue o derradeiro final de tua caminhada.

Levantei-me com certa dificuldade e falei-lhe com voz trêmula e emocionada:

Já sei quem és. Teu nome é Jesus Cristo.

Prostrei-me ajoelhado aos seus pés, convulsi-vamente chorando, e de olhos fechados quis beijar-lhe as mãos, mas Ele havia desaparecido.

Saí desatinadamente gritando, JESUS, JESUS, JESUS.

“Cala a boca seu maluco”

Escutei alguém esbravejando de uma casa próxima.

Cabisbaixo, retornei à marquise e lá estavam dois sanduí-ches intactos.

Olhei para o céu e murmurei, contrito e em voz baixa:

“O milagre da multiplicação dos pães!”.

Dois anos depois Pedro faleceu placidamente, no dia se-guinte em que convenceu uma mulher a desistir de atirar-se do alto de uma ponte, usando de argumentações iguais às que foram explanadas a ele,  por Cristo.

Seu corpo foi achado sob a mesma marquise e  levado para ser sepultado como indigente.

Obstinada e conformadamente, após o sagrado encontro com Jesus Cristo, suportou o prosseguimento de seu martírio, com a fé inabalável de que sua missão  haveria de ser cabalmente cumprida. E o foi!

Ary Franco



Fundo Musical: Once Upon A Time In The West (Finale) - Ennio Morricone
 

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