Registrei em uma foto um dos momentos mais
significativos da minha
vida.
Faltava exatamente um mês para o aniversário de 91 anos do
papai.
Nesse dia, 1º de agosto de 2006, ele estava hospedado em meu
so-bradinho, para
darmos continuidade aos registros das suas histórias ocorridas em Catalão,
que
iriam se transformar em livro, enquanto vida ainda tivesse.
Infelizmente, ele
se foi antes da conclusão do nosso projeto.
Nos intervalos
entre um relato e
outro que eu interrompia, pa-pai, que não conseguia ficar
quieto, apesar do
agravamento do en-fisema pulmonar, resolveu fazer uma
limpeza no terreno sob a mangueira e o jambeiro que há na frente da
casa.
Rastelou as folhas secas, recolheu os plásticos e papéis trazidos pelo vento,
retirou as baquearas
com a força das próprias mãos e, quando já cansado e
curvado sob o peso da
idade, da doença e da coluna torta, - porém de pé bem no meio do
terreno -
apoiou o co-tovelo no cabo do rastelo e olhou para a sua obra-prima, aprovan-do-a.
Eu, que o observava em toda a sua fragilidade
e solidão da janela do
meu quarto, me armei de coragem e compaixão e
o fotografei emocionada,
sem que ele percebesse...
Aos poucos fui
organizando naquele local uma das coisas que papai mais gostava: a
hortinha de ervas, onde ele ainda participou dos primeiros passos.
Foi ali que eu me despedi dele alguns dias após a sua morte,
em janeiro deste ano, prometendo-lhe que iria fazer daqueles 38 m² a mais bela
horta
da cidade.
E parece que consegui dar-lhe esse presente.
Fui fazendo
tudo o que me dava na cabeça, desde a estrutura em bambus com telas, mini-canteiros com tijolinhos e tocos de bambu, protetores em
plástico reciclado para os pontos de retenção de água; inventei uns
aparadores de mangas, para que não se esborra-chem na calçada; incluí
bebedouros e comedouros para pássaros; adquiri alguns enfeites e protetores
contra sol forte; defini as tri-lhas de circulação para o "garden tour",
onde só cabe um pé
não muito grande de cada vez.
Lá estão
plantadas mais de trinta espécies de ervas para chás e con-dimentos.
Algumas plantas são bastante conhecidas como salsa, coentro, cebolinha, tomilho, almeirão, quebra-pedra, dente-de-leão, erva-cidreira, guaco,
capim santo, mastruço, arruda, comigo-ninguém-pode, espada de
São Jorge,
abre-caminho; outras são consideradas mais nobres como alfazema, capuchinha, cânfo-ra, macelinha, losna,
manjericão, camomila, barba-de-velho, sálvia, babosa, dinheiro-em-pencas, citronela,
carqueja, cavali-nha, melissa,
funcho, poejo, orégano, bálsamo.
Além disso, há um coqueirinho e uma begônia que herdei da mi-nha filha; um limoeiro, herança deixada pelo meu vizinho
que se mudou; uma cerca viva de pingos-de-ouro à esquerda, que foi deserdada pela outra vizinha; nova cerca viva de ficos à direi-ta, que
eu mesma plantei.
Ganhei também uns vasinhos de plástico da vizinha do
bloco se-guinte ao
meu e juntei com uns que já possuía, plantando neles pimenteiras e algumas
matrizes de difícil reprodução; depois os pendurei nas travessas de bambus
no
interior do jardim.
Cortei os fundos das garrafas plásticas
grandes de refrigerantes e as pendurei também no interior da horta, cada
qual com uma poesia
plastificada no interior, todas dedicadas às plantinhas e aos animais que
circulam na área.
Há sabiás-laranjeira, sabiás-da-terra,
beija-flores, gaviões, lagar-tixas, pombos. Não sei se felizmente ou infelizmente,
têm apa-recido outros
que foram expulsos do Parque Nacional de Brasí-lia, recentemente incendiado.
A
identificação das plantas nos canteiros é feita em cds inutiliza-dos
presos em palitos de churrasquinho, com os nomes gravados em tinta especial,
dando-lhes um brilho ofuscante ao sol e ao luar.
Do início da
horta até a calçada são mais ou menos dez metros de distância e até a rua treze metros.
À medida que as plantinhas
foram crescendo
e os "efeitos espe-ciais" sendo incrementados, os transeuntes
começaram a se
deter para admirar o trabalho ali em desenvolvimento, especial-mente
nos fins
de semana durante suas caminhadas.
Depois, passei a observar uma habitualidade nas pessoas, que paravam quase sempre em qualquer horário, sem distinção de idade, sexo ou formação.
Nas vezes em que eu estava
nas proximidades, fui interpelada ou "puxei assunto", transformando-a
imediatamente na
horta-cara-do-papai, que era dono de um carisma extraordinário
Em qualquer
lugar que chegasse, bastavam-lhe dois ou três mi-nutos para
conquistar um ou
mais ouvintes atentos às suas histó-rias.
Ele ia emendando uma na
outra, sem
ordem cronológica, mas com minúcias e criatividade capazes de prender a
atenção por horas.
Quem o conheceu sabe bem
que ele era um excelente
contador de "causos".
A horta
acabou ficando bonitinha, ganhando a simpatia de mui-tas pessoas.
Foram aparecendo colaboradores, clientes, admiradores, farma-cêuticos,
poetas, jornalistas, que têm me cumprimentado pela iniciativa e
criatividade
– herdadas! Acabou ganhando o status de Horta Comunitária.
Entusiasmada com o
sucesso do empreendimento, resolvi criar um "Livro
de Visitas", em plástico, e colocar uma
tabuleta na entrada com os dizeres:
BEM-VINDOS À
HORTA COMUNITÁRIA DA 713 NORTE!
AQUI, ONDE REINA A NATUREZA,
NÓS SOMOS SÚDITOS.
Então me lembrei que, ainda criança, ajudava a mamãe a cuidar de sua
horta com grande variedade de verduras e legumes.
Lá o papai fez
um desvio do córrego, criando pequenos veios inter-calados com
poças entre os canteiros, de onde eu recolhia a água com um prato, lançando-a sobre
as hortaliças
com o máximo de força que podia.
Por isto escrevi em outra tabuleta:
VER, OUVIR E
FALAR COM A NATUREZA, DA QUAL SOMOS
PARTE, É UMA IDEIA MUITO ANTIGA...
Texto
publicado no Diário de Catalão e no site:
https://www.sandrafayad.prosaeverso.net
Sandra Fayad Brasília - DF

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