Recebi em 11/09/2022 |
Era sempre com um sorriso simpático que os crocodilos
nos aguardavam para um “papinho amigo”. Nunca quis
estreitar os laços de amizade com eles, e é por essa razão
que estou aqui contando a história...
Ósculos e amplexos,
Marcial
NOSSA VIDA EM KINSHASA
Marcial Salaverry
Pode-se dizer que Kinshasa era uma cidade moderna, com tudo que pode ter em uma cidade moderna.
Peço não esquecerem que vou dar uma visão da cidade e da vida que levávamos lá, há 50 anos atrás.
Como está hoje, não tenho muita idéia, pois as coisas mudaram muito.
Na época, a vida social em Kinshasa era intensa.
Como já tive oportunidade de dizer, os diversos núcleos europeus que lá existiam levavam uma vida meio segregacionista, não se misturando muito.
Os núcleos maiores eram logicamente os belgas e os portugueses que, aliás, não se afinavam muito.
Havia também um grande número de gregos, paquistaneses, americanos, franceses e, em menor número, italianos, espanhóis, dinamarqueses (maioria eram as enfermeiras dinamarquesas).
E em meio a essa Torre de Babel, alguns brasileiros doidos.
O interessante é que quase não havia mistura.
As escolas eram separadas (por questão linguística e de afinidades, meus filhos estudaram na Escola Portuguesa).
Até mesmo para diversão, cada colônia tinha suas preferências e se concentravam mais em determinados clubes ou boates.
Havia o “Manhattan Club”, mais frequentado pelos portugueses, e era o mais movimentado.
Já os belgas, preferiam o “Scotch Club”.
Claro que ambos eram frequentados por pessoas de todas as colônias lá existentes, e apenas os jovens que se discriminavam com um pouco mais de ênfase, principalmente em casos de ”paqueras internacionais”.
Embora surgissem pequenas rusgas, geralmente tudo era levado a bom termo.
A princípio estranhava um pouco essa ”separação”, acostumado que estava com a mistura que sempre existiu no Brasil, mas logo me acostumei, e por ser brasileiro, circulava entre todas as colônias sem qualquer problema.
Mesmo entre os sempre elitistas norte-americanos.
Para o chamado lazer familiar, havia uma grande variedade de locais e recantos, alguns paradisíacos, vamos falar um pouco de cada um deles, pois vale a pena.
Afinal, já dizia uma velha música, “Recordar é viver”...
Lac Ma Valée, trata-se de um lago, situado a alguns quilômetros de Kinshasa.
Para chegar-se lá, era necessária uma boa dose de vontade de chegar, pois a estrada tinha um grande trecho “tipicamente congolês”.
Valia a pena o sacrifício, pois o local era lindo demais.
Muito verde, natureza quase intocada.
Água clara, limpa, podia-se pescar deliciosos “capitães” (não, claro que não eram do exército. É um peixe chamado “capitão”).
Um local adequado para churrascos.
Geralmente formávamos um grupo para ir lá.
Ruy, Lucy e Stella Hasson, Eneida e Luigi e os Tornero.
Na volta, fim da tarde, parada obrigatória na “Boulangerie du Parc N'Binza”.
Uma confeitaria no meio da estrada, mas onde quase todos se reuniam nos fins de semana, para saborear os melhores doces portugueses que já comi em minha vida.
Coisa de louco mesmo.
Vidinha difícil e sacrificada...
Les Chuttes, ou seja, “quedas”.
Um trecho do Rio Congo, que formava umas corredeiras de um visual muito bonito.
Era um local mais adequado para passeios curtos, tipo depois da piscina, com o intuito de “esticar” a tarde.
A água apesar de convidativa não nos atraia, devido à possível presença de nossos queridos amiguinhos crocodilos.
Não tinha qualquer interesse em estreitar os laços de amizade.
Esses os locais que mais marcaram.
Havia outros, como os jardins do Palácio do Governo, situado na colina “de l'OUA (Organization de l'Unité Africaine)”.
Numa de suas muitas crises de megalomania, o Presidente Mobutu resolveu fazer uma réplica dos famosos Jardins de Versalhes.
Ficou realmente um jardim muito bonito, de uma manutenção cara demais para os padrões congoleses (onde será que já vi isso?) e que enchia os olhos dos visitantes estrangeiros, mas que deixava o povo se roendo de raiva.
Fazer o que?
Parece que o poder sempre mexe com a cabeça dos pobres mortais.
E Mobutu nunca foi uma exceção, muito pelo contrário.
E, finalmente, os clubes sociais, com suas piscinas e quadras para prática de diversas modalidades esportivas.
Enfim, o que não faltava eram opções de lazer.
Havia para todos os gostos.
Do que sentíamos muita falta, era de cinemas, pois os poucos existentes, além de desconfortáveis ao extremo, ainda tinham um som péssimo.
Um dos únicos filmes que consegui assistir, foi o comemorativo da Copa de 70.
Valeu a pena o sacrifício.
Outro passatempo muito “praticado”, era o passeio aos “Libre Service” (shopping da época).
Como sempre havia falta de muita coisa lá, esse era um “passeio” necessário, pois existia a necessidade de ver-se as novidades, comprando o que, e quando surgisse.
Geralmente tínhamos o serviço de informações, sempre que surgia alguma coisa interessante, um avisava o outro, e lá ia a procissão...
Havia também o chamado “Mercado do Marfim”, onde podia-se comprar lindas peças de marfim entalhado, cujo comércio aliás, era ilegal, mas praticado às claras (continuo achando um quê de familiar...)
Nesse “Marché du Ivoire”, encontrávamos também magníficos trabalhos em madeira, bem como telas preciosas, e sobre o trabalho dos artistas, sejam os pintores, escultores, há que se dedicar uma atenção especial, o que será feito em capitulo à parte pois, realmente é algo digno de nota.
Podem aguardar.
Relembrando as coisas lá vividas, posso asseverar que foi um experiência de vida muito válida, e que me faz procurar ao máximo bem aproveitar a oportunidade e procurar fazer de cada dia, sempre UM LINDO DIA, vivendo “um dia de cada vez”, pensamento que sempre tive lá, e me ajudou a viver e sobreviver para poder contar a história...