O Bife - Memórias de África


Ano: 1964 (período da guerra colonial portuguesa) - Guiné Bissau,
estrada Massambá – Farim

A paragem do velho Land Rover fez afluir um grupo de meninos à pequena clareira no seio da Senzala. Saltei do jeep e  distribuí uns chocolates à molecada, que logo retomou a brincadeira interrompi-da.

Os moços atiravam, continuadamente, uma bola de trapos esfarra-pada a um rafeiro de pelo negro e sujo, cujos ossos, salientes na pele, mais pareciam prumos de tenda, mostrando a extrema ma-greza do animal. Este, manifestamente debilitado, lá esboçava um salto ou outro, mais para  satisfazer os seus amigos que por mani-festa vontade própria.

Atônito com aquela cena que me escuso de adjetivar, balbuciei desajeitamente uma pergunta a um dos garotos: ouve lá, como se chama o cachorro? – E a resposta veio rápida: chama-se - imaginem - "
bife"!

Mais atónito ainda com esta enormidade, e sem saber bem como continuar a conversa, lá voltei a perguntar ao mesmo garoto: e ele come muito? - E outra vez a resposta foi imediata: come  senhor, come muito, a gente é que não lhe dá!

Bem, confesso que não esperava a naturalidade daquela afirmação que, linearmente interpretada por um europeu, seria intuída como o culminar de uma boa anedota. Quedei-me sem saber que mais dizer.

Na realidade, a luta pela sobrevivência para grande parte das populações africanas não pode dar lugar a questões consideradas (por eles) de menores, como a necessidade de alimentar um qualquer cachorro.


Limitei-me, por isso, a pensar que aquelas crianças que, por ino-cente ironia, tinham decidido batizar o rafeiro de "bife", nunca lhes havia passado pelo estreito - e provavelmente nunca lhes viria a passar - nada que se parecesse com uma suculenta peça de car-ne, daquelas dignas desse nome.

Infelizmente, a situação naquela ex-colônia portuguesa, tal como em muitos outros países do continente Africano, permanece ainda hoje muito difícil para as populações, que se vêm dizimadas pela fome e pelas doença, face ao abandono de quem continua a des-prezá-las.

Eugénio de Sá

Nota do Autor:

Este apontamento, escrito em Janeiro de 2008, mantêm-se tão gri-tantemente actual como no tempo em que os factos descritos ocorreram. Ou pior, segundo as últimas noticias conhecidas. Pobres povos, que mereciam bem melhor do que o abandono a que as suas classes dirigentes os votam, enquanto
despudoradamente enriquecem.



Fundo Musical: Valsa - Carlos Paredes
 

 
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