De visita à ilha da Madeira, ao desembarcar do velho Angra do He-roísmo, lá estava no cais a me esperar um velho amigo das andan-ças jornalísticas
de Lisboa em que ambos militáramos anos a fio. Arnaldo Barão, o Arnaldinho,
como a rapaziada da arte, carinhosamente, o tratava, mantinha-se o "malandro" de sem-pre: longa madeixa, já sal e pimenta, a tombar-lhe, rebelde, pela
testa e um sorriso gaiato que lhe rasgava o rosto, de orelha a orelha.
Após os exuberantes abraços que a saudosa ausência justificava, Arnaldo disse-me, com o entusiasmo pela vida que o caracteriza-va: nem penses ir
para algum hotel!
– Ficas lá em casa. A patroa já tem tudo pronto para te receber. Calei-me e segui-o, ambos ajoujados ao peso das duas pesadas ma-las que trouxera
comigo.
Ainda no caminho para o carro, Arnaldo foi-me dizendo que nessa noite iríamos a uma festa que o seu amigo Alexandre dava em sua casa,
para comemorar o aniversário do seu neto mais velho. Mas se ele é teu amigo e não
meu, ía eu a retorquir...
- Nem penses que te baldas, cortou o Arnaldinho, sem me dar mais hipóteses. E continuou: aqui na ilha os nossos amigos são recebi-dos como família pelos que cá vivem e que assim nos consideram.
Depois de um bom duche e de um reparador almoço, fomos até ao café
da Sé, mesmo no centro do Funchal, matar o vício com um
de-licioso arábica de S. Tomé. Vício que alimentáramos ambos quan-do,
frente a frente, nos noturnos frios do gabinete da redação, lá íamos batendo o queixo, enquanto alternávamos as pancadas na velha máquina de escrever com o entornar das canecas cheias do negro e precioso liquido, mantido quentinho na velha garrafa
mas pródiga térmica.
Dois dedos de conversa e lá se nos foram chegando, com pretextos diversos, amigos e conhecidos do Arnaldo, curiosos pela visão do desconhecido
personagem.
Falámos, rimos e contámos anedotas picantes, novas e antigas. Enfim;
o trivial em reuniões despreocupadas de homens vividos.
Chegava a noite e, com ela, tomava forma a conhecida beleza da noite
naquela urbe Madeirense.
Um passeio pela marginal - que entretanto se iluminara de vistosas e coloridas
luzes – emprestou delícias ao caminho percorrido a pé até à casa do Alexandre, uma belíssima vivenda de dois pisos, feérica e festivamente iluminada. Na
soleira da porta, lá estava o anfitrião; um simpático senhor de alvas
cãs a ornar-lhe as têmporas, a cruzar o limiar do último quartel da existência
huma-na.
Estranha empatia se gerou entre mim e o ancião. Mal nos conhecê-ramos e já ele me
apresentava calorosamente à família como o amigo de Lisboa. Falamos um pouco
mais e Alexandre pediu-me que descesse com ele à
cave do edifício, onde guardava uma esplendida garrafeira, que reunira durante longos anos.
Passamos em revista as garrafas cuidadosamente guardadas.
Todas tinham uma história, e de todas Alexandre ia falando com porme-nores; a origem, as castas, o paladar previsível, a temperatura ideal...
Depois dirigimo-nos a uma pequena sala íntima vizinha à adega, que
decorara com simplicidade mas também com conforto. É aqui que me retiro
para meditar, para ler um pouco, para ouvir música e relembrar a minha vida, confessou-me
Alexandre.
Sentemo-nos, meu amigo, convidou ele. E ligou um gira discos on-de
pôs a tocar um velho 45 rotações. Começaram a ouvir-se os acordes de uma
música brasileira; "se esta rua, se esta rua fosse minha, eu mandava, eu mandava-te buscar....".
Olhei o rosto de Alexandre; duas lágrimas rolavam lentamente pela sua
face, marcada pela vida. Quedei-me num silêncio respeitoso. Aos poucos, o
meu anfitrião foi recuperando da emoção experi-mentada e confessou-me: sabe, Eugénio, meu novo e querido ami-go; vez por outra assalta-me uma grande
nostalgia e lembro-me, com grande carinho, de uma namorada que tive, jovem ainda. Ela morreu de uma doença incurável. Era então uma menina de 19
anos. Amei-a muito e esta era... a nossa música!
Regressei a Portugal dias depois e os primeiros
passos que dei em Lisboa levaram-me directamente a uma discoteca onde pedi o disco, explicando
ao vendedor: olhe, meu amigo, a letra da música é assim: se esta rua, se esta
rua fosse minha..... e saí feliz, com o disco de baixo do braço.