O presente


Há vinte e três anos, ora emocionado, ora divertido, eu o admiro. Neste momento, por exemplo, ele repousa na minha frente recos-tado ao rádio. Foi confeccionado por mãos inocentes e puras e trazido embrulhado em um fino papel de orgulho e amor. Confesso, no entanto, que até hoje busco o verdadeiro sentido dos seus tra-ços uma vez que a capacidade criativa da infância é de expressão infinita. Não sei se naquela ocasião já nos amávamos tanto, eu, com certeza que sim...

Lembro, para caracterizar o momento, que hoje é domingo. Com a chuva, o dia provavelmente se restringirá ao recolhimento. Instin-tivamente sentei-me diante do computador para fazer o tempo passar. Saudosa, minha esposa prepara o almoço e revive seus an-tepassados no lamento de um fado. “Ela”, a que me presenteou, com certeza responderá em breve com uma tarantela para equili-brar o sentimento familiar e restaurar um pouco de alegria ao dia. O certo é que não faltarão as gozações ao gosto musical onde eu, invariavelmente, levo vantagem. Mas o mundo é engraçado, desdenhamos de quem realmente amamos...

Retornemos, no entanto, ao presente. Não o tempo, mas o objeto. Enigmáticos nos observamos. Ele imóvel, marcado pela emoção de uma certa data. Eu, envelhecido, marcado pelas cicatrizes naturais da vida. Ele tem a vantagem de manter a sua materialidade no tempo enquanto eu, mortal que sou, deixarei como rastro o que de bom construí. Nenhum dos dois terá vantagem sobre o outro, ape-nas se complementarão. Juntos, entrelaçados, consolidarão um momento bem definido de uma bela história de vida.

Complacente e com incorrigível espírito de gozação, reclamo, sem-pre que a ocasião se apresenta, que eu era muito mais bonito do que a representação esboça. Sobre uma pequena tela (14 x 22 cm.) ficou a certeza da tentativa de registrar a imagem de um pai zelo-so, expressão jovial, traços bem definidos representando uma época em as expectativas ainda se justificavam pelo tempo previs-to para realizações diversas.

Não me lembro se o fundo da tela era originalmente branco e o tempo o conduziu para um bege claro ou sempre foi desta tonali-dade. O contorno do meu rosto foi desenhado em bege bem mais escuro. Um borrão vermelho deixa claro que se trata da minha lín-gua. Meu Deus! Será que eu falava muito? Em resposta ela invaria-velmente sorri, ainda com expressão travessa... No meio da figura outras duas manchas se projetam até quase se tocarem. Ela afirma com convicção que eram as minhas bochechas. Mais acima dois pontos pretos se unem a um outro borrão também preto. Para o superior ela, com um sorriso puxado para o cínico, alega que devi-am ser as minhas sobrancelhas. Mas e os olhos, se são castanhos claros, por quê o preto? Sabem o que ela sempre me diz? - Prova-velmente seriam as minhas olheiras... Com aqueledesgraçadacheio de orgulho e amor, defendo-me alegando que eram das noites mal dormidas e entrecortadas pelas suas cólicas e febres, às vezes até acompanhadas por indisfarçável manha. Ainda bem que a parte de cima, que ela não soube decifrar, era azul. Rapidamente me apoderei da possibilidade de ser a minha cabeça cheia de ideias e pensamentos brilhantes. Tolerante, com um risinho de de-boche, “ela” concorda com um vago - Pode ser...

Se ainda não descobriram, refiro-me a uma tela pintada por “ela”, com a supervisão da professora, ofertada a mim como presente no Dia dos Pais, cheia de orgulho. Com certeza devo ter dito: - Obri-gado meu amor, que lindo!!!

Enquanto escrevo, minha cara metade terminou o almoço, tomou um revigorante banho e, com um copo de gin-tônica, me avisa que está tudo pronto. Não sei se pelo meu desejo de liberdade ou pelo espírito socialista conservado desde a mocidade, a minha bebida preferida é Cuba Libre. Hoje, infelizmente, como estou tomando um anti-inflamatório, nem gim nem cuba. Tenho ímpeto de correr à janela, encher os pulmões de ar e soltar num grito retumbante a frase que marcou Pedro Nava em mim:

- A velhice é uma merda...

Mais calmo, curvo-me resignadamente à irretroatividade do tempo. Tenho de fechar esta crônica. Apaguem esse arroubo de inconfor-mismo, retornem ao meu saudável espírito gozador e lembremos, juntos, a frase que ouvi, se não me engano, em uma entrevista da Tônia Carreiro na televisão.

- Após certa idade, a única alternativa que temos para a velhice é a morte, portanto, fiquemos com a velhice.

Imitando as inconstâncias da vida, agora o sol se abriu recuperan-do, por enquanto, a alegria do dia. Irrequieta, “ela” vem me avisar mais uma vez que está com fome e a comida está na mesa. Com certeza ainda não sabe que na essência desta crônica está ela. Por fim, sento-me à mesa com a família e fico meditando, sem que eles desconfiem, como são importantes para mim. Mas, é claro, sempre atento à próxima oportunidade de gozá-los.

Em tempo. No almoço não houve fado nem tarantela. Influenciada pela música que vinha do baile pré-carnavalesco da esquina, “ela” se decidiu pelo Zeca Pagodinho enquanto eu zeloso concordava:

- Deixa a vida me levar, vida leva eu...

Domingos Alicata
Rio de Janeiro - RJ - 30/01/2005




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