A Freira e a Lua


        
Quando comento com amigos que as caminhadas solitárias são grandes fontes de inspiração ou de reflexão, pensam que exagero. Hoje me encaminhava para mais um dia deste rotineiro prazer quando fui surpreendido por um espetáculo maravilhoso. Ao atravessar a Avenida Atlântica, dei de cara com uma Lua arrebatadora. Tal era o seu tamanho no horizonte, que nãoexagero na expressãodei de cara”. Se não fosse Lua Cheia, ela poderia ter se aproximado perigosamente da Terra. Tinha acabado de nascer, estava um dedo acima da linha do horizonte. Com sua coloração laranja avermelhada, assemelhava-se  à expressão de tímida menina em presença do primeiro beijo.

            Por alguns instantes parei para admirá-la com a atenção que merecem os grandes momentos da vida. A certeza de que ela me acompanharia na caminhada, antecipava-me o prazer do momento. Como ocorre sempre com quem brinca de escrever, de imediato comecei a imaginar de que maneira poderia aproveitar aquele cenário e transportá-lo para as páginas de uma virtual crônica ou verso.

            Passo que segue, eis que surge a imagem que mereceria ser o tema desta crônica. Uma Freira (ou Noviça?), sentada no banco da praia, sozinha e voltada para o mar, observando também aquela enigmática Lua. Pelo seu perfil, pude observar que ainda era jovem. Tal como eu, parecia perdida contemplando aquele esplêndido anoitecer. Neste momento daria alguns anos da minha eternidade para me envolver na pureza dos seus pensamentos. Não por um motivo banal, mas para tentar recuperar a nas pessoas que o mundo aos poucos vai destruindo em mim. O que eu sempre admiro nos religiosos é o seu estado de contemplação. Em que certezas seu olhar sereno e triste se apoiava neste momento? Não sei se é um erro de interpretação, mas sempre achei que a serenidade compreende um pouco de solidão. Será?

            O fato é que o corpo físico da Freirinha permaneceu preso ao banco por onde passei, mas os pensamentos, filosoficamente me acompanharam. Não sei se por maldade, normalmente procura-se relacionar a vocação religiosa a alguma desilusão no passado. No caso dela, poderia ser o amor a Cristo que tenha se sobreposto ao seu amor terreno. Pensando melhor, poderia também ser uma reflexão final que antecede o momento de se decidir pelos votos definitivos. Qualquer que fosse o motivo, o momento se apresentava propício.

            Agora a Lua estava mais alta, não muito. O suficiente porém para encontrar filetes de nuvens que se interpunham entre nós e ela. A impressão era de que a Lua, sensualmente colocava os dedos em frente ao rosto, deixando escapar apenas o brilho menor do seu olhar, agora menos avermelhado. O seu reflexo no mar, no entanto, dava a nítida impressão de que um enorme cardume de peixes saltava em frenético bailado. Nesse instante uma leve nostalgia me retornou à infância e recordei uma trova que meu pai me ensinou e eu a declamava aos seus amigos orgulhosamente. Talvez o primeiro sentimento poético:

Teus olhos são negros, negros
Como
as noites sem luar.
São
ardentes, são profundos,
Como
o negrume do mar...

            Entretido com meus pensamentos, sem quase notar, fazia o caminho de volta. Pensei na ironia do momento. Tantos pensamentos puros e, em poucas horas mais, este mesmo cenário, seria invadido por prostitutas, drogados, mendigos, guardas corruptos, enfim,  retornaria a banalidade mundana das noites de Copacabana.

            Como profetizou Rubem Braga: - “Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras; e deste risadas ébrias e vãs no seio da noite”.

            No retorno à origem, não encontrei mais a Freirinha. Sentei-me no quiosque próximo ao banco em que ela esteve e, instintivamente, me coloquei voltado para a praia. Nuvens mais densas agora impedem qualquer visão da Lua. Enquanto terminava de saborear minha latinha de cerveja, imaginei a hipótese de que, realmente, Deus lhe preparara um cenário especial para sua tomada de decisão.

            Levantei-me para ir embora e me lembrei, encantado, de que em recente crônica, naquele mesmo banco, eu jurei ter visto Fellini.

            Qual será o limite entre o real e o imaginário?

            Ao chegar em casa, confirmei. Realmente era noite de Lua Cheia...

Domingos Alicata
Rio de Janeiro - RJ - 21/07/2005




Fundo Musical: Cinema Paradiso
 

 
Anterior  Próxima Crônicas Menu Principal