Como já dito em meus
anteriores escritos, por prescrição médica, tenho bem cedinho dado minhas
obrigatórias caminhadas diárias, limitadas a cinco voltas no quarteirão
onde moro. Não é fácil, pa-rece-me ser uma mega-maratona.
Hoje, deparei com algo que
despertou-me um misto de indignação, tristeza e piedade. Literalmente colada
no asfalto estava uma pomba, com a espessura de seu corpinho reduzida a de
uma folha de papel. Foi atropelada e inúmeras vezes amassada e amassada,
amassada e amassada, pelos veículos passantes. Isso deve ter acontecido na
tarde do dia anterior, já que por ali passei cinco vezes ontem pela manhã e
nada vi.
Próximo aos restos mortais estava
um inquieto pombo, aquele que deveria ser seu companheiro, como que à espera
do milagre de uma ressuscitação. Foi-me passado que os pombos são fieis
quando casais. Com a palavra os adeptos da columbofilia.
Receoso de que também o pombo
fosse impiedosamente atropela-do, interrompi minha caminhada e ajoelhei-me
para descolar do asfalto aquela massa disforme que outrora voava livre e
liberta por paragens sem fim. Um idiota freou seu carro bem próximo a mim e
buzinou. Ignorei-o e terminei o que me tinha proposto fazer. Ao voltar para
a calçada com a pombinha na mão, “meu semelhante”,
ao passar por mim, gritou: “tá doido pra morrer, né
velho?!” Pelo espelho retrovisor ele deve ter visto meu desprezo de
não receber nenhuma reação de minha parte, nem um olhar... Tinha em minhas
mãos algo infinitamente mais importante que ele.
O pombo, como que conformado e
satisfeito com minha atitude, alçou voo para o infinito. Coloquei a “pasta
mumificada” ao meu lado, no mesmo meio-fio em que me sentei e comecei
a meditar. Seria uma pomba que vislumbrou um petisco, quiçá um pequeno miolo
de pão, para levar ao seu filhote ávido de fome, que a espe-rava de bico
aberto no ninho. Não medindo consequências, concen-trada no alimento achado,
incautamente colocou sua vida em se-gundo plano e foi atropelada por um
motorista insensível que deve ter passado sobre ela como quem passa sobre
uma casca de laran-ja.
Olhando para os despojos, senti
meus olhos lacrimejarem e pensei no filhotinho agonizante em seu ninho, sem
entender por que fora abandonado. Por que sua mãe não o abrigou sob suas
cálidas asas, da chuva inclemente que caiu durante a noite? Imaginei quantas
vezes seu companheiro fiel procurou-a em um esvoaçar frenético e sem rumo,
sentindo sua falta, até que finalmente a encontrou, po-rém sem vida..
Meus pensamentos foram
interrompidos por um amigo e vizinho que julgou estar eu passando mal e
ofereceu-se a me ajudar a voltar para casa. Sem entrar em detalhes,
disse-lhe que estava bem, apenas descansando da caminhada.
__ Por que choras então? Sentes
alguma dor?
__ Sim, mas logo vai passar. Fique
tranquilo!
__ Vou avisar alguém em tua casa
que não estás bem, fazendo menção de pegar o celular.
__ Não! Obrigado, vou até dar uma
corrida para te mostrar que nada sinto – OK?
Levantei-me, dei uma olhada de
soslaio para a pombinha e corri, corri o mais que pude, até a exaustão e com
a mente ocupada em tentar saber a razão do motorista não ter desviado ou
parado o carro para evitar o atropelamento. Na volta seguinte já um gari
varria a rua e em meio ao lixo lá estava o corpinho dela, confundido com as
folhas igualmente mortas e caídas de suas árvores.
Ave Columba Mater!
Quis o destino que não voltasses ao ninho.
Perdeste a vida na ânsia de bem tratares teu querido filhotinho.
Agarro-me à esperança de que te substitua o teu fiel companheiro.
Que ele logre acabar de criar teu filho, que cresça belo e fagueiro!
Ary Franco
Fundo Musical: Toselli Serenade (E
som de pássaros)
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