(Acima, minha foto tirada pelo arremessador de facas)
(PARTE I)
Chegou aqui na “mega metrópole” de Miguel Pereira (RJ), on-de resido, o Circo Montreal, anunciando pelas ruas, em propaganda móvel, a sua
breve temporada.
Invadiu-me uma sufocante lembrança daquela minha querida infância
em que, de mãos dadas com meus pais, frequentava todos os espetáculos circenses. Naquela remota época, o mais famoso era o Circo Garcia, com seus
domadores e feras bravias que tan-to temor me causavam. Gostava mais dos
palhaços e dos mágicos.
Voltando aos tempos atuais: Dizia o alto-falante: “ÚLTIMOS DIAS DA TEMPORADA. ADULTOS R$ 10,00, CRIANÇAS R$ 5,00. APRO-VEITEM!”. E o som ia
se desfazendo na distância, deixando-me aquela vontade de ir até lá assistir o que fiquei sem ver nas últimas décadas.
Ninguém quis ir comigo. Fui só! Sábado, seção das 16:00h.
Desta vez EU compraria o meu ingresso e fui direto ao guichê da bilheteria. Tinha umas quatro pessoas na fila e algumas crianças carentes, suplicantes,
pedindo debalde que lhe pagassem uma en-trada. Levado pela comoção, comprei o meu ingresso e um outro de R$ 5,00 para uma criança que
ainda não sabia qual seria. Colo-quei-o no bolso e vi um garoto de
uns nove anos, desgarrado dos outros, sentado no meio-fio. Cabeça baixa, queixo encostado no joelho e com um pedacinho de vareta rabiscava alguma coisa no
chão de terra. Parecia-me tristonho...
Aproximei-me dele e perguntei:
_ Você gosta de circo?
_ Sim! Sim! Respondeu-me, já de pé, limpando com as mãos os fundilhos da bermuda bastante surrada.
_ Então por que você não está junto com seus amiguinhos pe-dindo pra alguém pagar sua entrada?
_ Eles não deixam eu chegar perto deles e não são meus ami-gos. São de outro bairro.
_ Então vou te dar uma entrada – OK?
_ O sr. ta brincando comigo, né?! Que qui eu tenho que fazer?
_ Bom, você vai ter que segurar este ingresso e correr até a entrada
do circo e aproveitar o espetáculo...
Depois de ver o sorriso iluminado que desabrochou no rosto daquele
menino, eu já poderia até voltar pra casa, devidamente satisfeito. Mas queria muito assistir o espetáculo.
_ Como é o seu nome?
_ Gabriel
_ Toma a entrada Gabriel e divirta-se, aproveite!
_ Brigado, moço!
E saiu em disparada para a entrada. Eu ainda estava compran-do um saco grande de pipocas salgadas quando vi o meu amigui-nho voltando cabisbaixo.
_ O que aconteceu Gabriel?
_ O porteiro disse que eu só podia entrar com um responsá-vel e eu
não tenho!
_ Vem comigo, vamos entrar juntos – OK?
Ele fez que sim com a cabeça, mas meio descrente de lograr êxito.
_ Me dá sua mão. Eu sou seu avô, não esqueça!
Entregamos as entradas juntos e o porteiro sorriu, pois o Ga-briel não estava muito bem trajado e com uns chinelos bem rotos, talvez fosse melhor
estar descalço. Nosso aparente contraste era flagrante e notório.
Disse-me o porteiro num tom meio condescendente:
_ O sr. fica responsável por ele, certo?
_ Deixa comigo!
Entramos e fomos diretos para o quinto “poleiro”.
Cinco minutos de expectativa e chega à arena o arauto circen-se, anunciando em um megafone, no idioma “portunhol”: “RESPEI-TÁVEL PÚBLICO, SEJAM BEM-VINDOS E ASSISTAM AGORA OS NOSSOS ARTISTAS DO CIRCO MONTREAL. ESPERAMOS QUE O ESPETÁCU-LO SEJA DO AGRADO DE TODOS!”. E a
bandinha clássica tocou, ace-lerando o coração de quantos mais ansiosos, ali estavam.
Ofereci ao Gabriel uma pipoca e ele pegou um punhado, sem tirar os
olhos do picadeiro. Tava nervoso, nem piscava!
Eu me via nele. Espelho de minhas emoções de outrora. Era eu quem
estava ali, igualzinho, com a mesma alegria transbordan-do no peito. Sabia
exatamente o que se passava em seu imo infan-til.
Vimos malabaristas, trapezistas, mágicos, engolidor de espa-das, comedor
de fogo, palhaços, o homem-sapo (um
espetacular contorcionista), equilibristas, a mulher barbada. Nessas alturas, o Gabriel já tinha se apossado
do meu saco de pipocas e na hora do arremessador de facas, ele acabou com
todas elas. Ficou em pâni-co, achando que o homem iria acabar acertando
uma facada na-quela moça que estava presa a uma roda girando. Resgatei o
saco vazio, enchi-o com um sopro e estourei-o.
Ai, que farra, como eu estava feliz...! No final, a “troupe” de todos
os artistas desfilou para nós no picadeiro acenando um adeus e agradecendo
os aplausos da plateia, talvez eu, um dos mais em-polgados, chorando
e fazendo força para não soluçar. Algo me dizia que era minha despedida, meu
derradeiro adeus a um Circo. Quan-do de pé, me equilibrando no “poleiro”,
juro que uma daquelas trapezistas acenou para mim, talvez pelo destaque
dos meus cabe-los brancos, no meio de todos aqueles jovens... retribuí o aceno, interrompi os meus aplausos e joguei-lhe um beijo.
O Mundo Circense é uma das coisas mais belas do mundo. É uma imensa Família Nômade que leva em sua bagagem alegria, dis-tribuindo-a de cidade
em cidade de cada país, praticamente entre-gando-a em domicílio...
Já na saída, de mãos dadas com o Gabriel, perguntei se ele queria
mais pipocas e ele fez que sim com a cabeça. Comprei-lhe um saco
grande de pipoca doce, por opção dele. Tomamos também um suco de
maracujá.
Aí aconteceu o inesperado! Com a boca cheia de pipoca ele perguntou-me, à queima roupa, com a maior naturalidade do mun-do, você é Deus?
Olhando pra ele por uns dez segundos, sem saber o que dizer, coloquei a mão em seu ombro e conduzi-o de volta ao meio-fio em que estava antes sentado e sentei-me ao lado dele.
_ Gabriel, por que você me fez esta pergunta?
_ É que eu aprendi a rezar pra Deus mas nunca vi ele. Não sei como
ele é... e você fez tanta coisa boa pra mim, que eu achei que Deus
fosse assim...
_ Gabriel, eu não sou Deus mas carrego um pedacinho dele dentro de mim. Todos nós temos esse pedacinho e o usamos quan-do somos bons com as
pessoas. Se calhou de eu ver você sentado aqui neste meio-fio e ter te escolhido para dar um ingresso foi por-que você merecia. Quem te escolheu não
fui eu, foi Deus, enten-deu?
_ Eu também tenho esse pedacinho dentro de mim?
_ Claro! E o seu pedacinho é bem maior do que o meu, inda por cima,
você tem o nome de um arcanjo, sabia? Sua mamãe deve ter se lembrado disso quando escolheu este nome pra você. Agora, você vai pra casa, né!?
_ Eu vou mais tarde, não tenho pressa de chegar em casa. Ma-mãe
morreu e meu pai casou com uma mulher que não gosta de mim, é a minha
madrasta! Ela é muito chata!
_ Então diga-me uma coisa: Alguma vez você deu um beiji-nho na sua
madrasta? Sentou no colo dela? Acariciou seus cabelos?
_ Não! Ela não é minha mãe!
_ Então pega aquele pedacinho de Deus que está aí dentro de você e
use-o com a sua madrasta e você vai ver como ela vai passar a gostar de você
e tudo vai mudar daqui pra frente. Promete que você vai tentar?
_ Bom, posso tentar, mas acho que não vai dar certo!
_ Se não der certo, pelo menos vai ficar bem melhor pra todo mundo
na tua casa, eu prometo!
_ Mas eu não quero gastar o meu pedacinho de Deus com ela!
_ Gabriel, esse pedacinho não gasta nunca. Você pode usá-lo à vontade que jamais acaba. E olha! Tem gente que vive muitos anos e nunca usa o
seu pedacinho e morre sem ser bom e Deus fica muito triste. Você não vai
deixar acontecer isso com você, vai?!
_ Tá legal!
_ Então vai agora pra casa e faz o que eu te falei. Faz de conta que eu sou Deus! Não esquece, vai logo!!!
Ele levantou-se, disse “brigado”, me deu um tchau e foi an-dando.
Não sei quanto tempo permaneci meditando, sentado na-quele meio-fio. As
pessoas da seção das 18:30h já estavam chegan-do e, ao passarem por
mim, cochichavam algo entre elas.
Velho sentado no meio-fio chorando, ta passando mal (enfar-te, AVC,
etc...) ou ta bêbado. Olhei para o alto, bem lá no meio das nuvens, até onde
minha visão alcançava e falei pra ELE:
_ “Acho que fiz tudo certo, caso contrário, me perdoe – OK?”.
Levantei-me com as pernas dormentes e voltei pra casa, pen-sando no Gabriel. VIVA O CIRCO!!! VIVAMOS A VIDA!!!
FIM DA PARTE I
(PARTE II)
Eis que, acaba de chegar aqui o CIRCO BABILÔNIA, armado no mesmo
local onde estava o Circo Montreal.
Passou pela porta de minha casa, nova propaganda móvel: “OI
VIVA O SOL, OI VIVA A LUA, VIVA O PALHAÇO QUE ESTÁ NA RUA”. “NÃO
PERCAM NESTE SÁBADO, DIA 9, A GRANDE ESTREIA DO CIRCO BABILÔNIA...”
e lá se foi a camionete ruas afora avisando sobre o espetáculo.
Pensei comigo: desta vez irei logo no início da temporada, no
primeiro dia, na seção das 16:00h. Já sei que irei sozinho, como da
vez passada.
Assim foi feito. Cheguei por volta das 15:30h, comprei meu in-gresso
e lembrei-me do Gabriel ao ver a garotada pedindo uma en-trada pra
eles.
Endureci meu coração e só comprei a minha, que custou-me R$ 20,00.
Fui direto à carrocinha de algodão doce. No meu tempo de criança só
havia daqueles brancos lembrando as barbas de um Papai Noel.
Seguindo a modernidade, escolhi um com a cor azul. Éca! Não me
importa de que é feito o corante com anilina, pois naquele momento
sou uma criança com todas as imunidades saudá-veis a que tenho
direito.
Mal coloquei o primeiro naco na boca, ouvi ao longe alguém gritando:
_Deus! Deus!
Olhei para quem gritava e fiquei surpreso. Era o próprio Gabri-el
correndo para me abraçar:
_Eu sabia que você vinha! Sabia! Tinha certeza! Disse-me ele, quase
gritando.
_Gabriel... como você mudou! Cresceu bastante nestes últi-mos 7
meses! Quase não te reconheci nestas calças compridas, tê-nis
bacana, agasalhado com um blusão legal, cabelo penteado, um brinco
na orelha... Vamos lá, que vou te pagar uma entrada.
_Não precisa,”Brigado”, eu já comprei a
minha, olha aqui! Mês passado, fiz 10 anos.
_Puxa, que bacana! Parabéns!
_É, depois que fiz o que você mandou, usei aquele pedacinho meu de
Deus e tudo mudou lá em casa. Até ganho do papai uma mesada de R$
5,00 por semana. Ele não faz mais biscates e arran-jou um emprego.
Legal, né?
_Você fez as pazes com sua madrasta? Fez tudo que eu falei?
_Fiz sim, e deu certo! Mas continuo gostando da minha mãe e rezo pra
ela todas as noites!
_Claro, muito bem! Nunca deixe de orar por ela!
_Seus pais nunca vêm com você ao circo, por quê?
_Papai não gosta e minha madrasta lava roupa pra muitas pes-soas. Só
sai de casa, pra fazer compras. Os dias todos fica no tan-que, mas
papai inda vai comprar u’a máquina de lavar roupas, pra ela.
Dividimos o algodão doce e comprei dois sacos gigantes de pi-pocas,
um com sal (meu) e outro doce (o
dele). Entramos e senta-mos no mesmo quinto poleiro, como da
outra vez. Enquanto não começava o espetáculo, aproveitei para
dizer, mais uma vez, ao Gabriel, que eu não era Deus e que ele me
chamasse de “Vô Ary”.
_Tá legal, mas pra mim você continua sendo Deus! Sempre re-zo
lembrando de você.
Ri, quase chorando, da ingenuidade daquela criança e fiquei
emocionado com o que consegui melhorar no seu convívio familiar. Ele
me contou que tomava banho todos os dias, não fazia mais ga-zetas ao
colégio, tirava notas altas e que ia ganhar uma bicicleta no final
do ano, se continuasse assim. Dei parabéns a ele!
O espetáculo começou com cada artista exibindo suas habili-dades,
correndo seus riscos e recebendo nossos entusiásticos aplausos.
Estouramos nossos sacos de pipocas vazios e um “velho”
de uns 32 anos, sentado no poleiro imediatamente abaixo do nosso,
olhou pra trás com cara feia em sinal de protesto. Coitado... como
envelheceu rápido, pensei!
Na saída, fizemos uma farra comendo churros com laranjada. O Gabriel
quis pagar a metade da despesa, alegando que não gas-tava as mesadas
que o pai lhe dava e que já tinha mais de R$ 100,00 guardados. Mas
não aceitei, lógico!
Impelido por forte emoção, tive a ideia da gente sentar no mesmo
meio-fio em que ficamos sentados da outra vez, sete meses atrás, mas
ele disse que não podia por causa da calça nova que usava.
_E agora Gabriel? O que você vai fazer?
_Vou correndo pra casa. Não quero chegar atrasado pra hora da janta
e ainda tenho que estudar uns deveres de casa.
Que mudança! Tinha ali uma nova criança, totalmente modifi-cada,
recuperada para ultrapassar os eventuais obstáculos surgidos em seu
caminhar. Graças a Deus!
_Gabriel, o que você quer ser, quando crescer?
_Conseguir um emprego que eu ganhe muito dinheiro pra po-der ajudar
as crianças pobres e também as que perdem os pais.
_Para isso, não esqueça que você vai ter que estudar muito!
_Eu sei!
Demos um abraço, beijei-lhe o cocuruto da cabeça e ele se foi.
Decidi sentar-me sozinho no meio-fio e ficar a meditar. Passa-do um
tempo, um moço usando seu pedacinho de Deus, perguntou-me se eu
precisava de alguma ajuda. Disse-lhe que sim.
_Dê-me sua mão para ajudar a levantar-me.
_Só isso? Tá tudo bem com o Sr.? Pareceu-me ver lágrimas em seus
olhos...
_Obrigado! Não sabe o quanto foi importante sua ajuda! Real-mente eu
choramingava, mas sem sentir dor alguma, bobagens, apenas alegria.
Você vai ao circo?
_Sim! Meu filho está na fila com a mãe dele, comprando nos-sos
ingressos.
_Presta atenção ao equilibrista no fio de arame, sem rede de
proteção. Achei sensacional! No meio da travessia, rufam os
tam-bores e ele dá um salto mortal... Embaixo, ajoelhados na
serragem afofando o chão da arena, ficam quatro palhaços fingindo
rezar pra tudo dar certo, mas na verdade, eles estão lá treinados
para amor-tecer uma eventual queda do equilibrista, o que não
ocorreu, gra-ças a Deus!
Ei, pai! Vamos!
Olhei o menino de mão dada com a mãe, sacudindo alegre-mente os
ingressos. Como parecia com o Gabriel... como fazia lem-brar minha
infância! Era qual um espelho mágico refletindo minha imagem através
dos tempos idos...
Voltei pra casa, desta vez confiante de que ainda assistiria ou-tros
circos se por aqui acampassem e muitos outros “Gabrieis”
inda iria poder ajudar, se Deus assim me permitisse!
Ary Franco
Fundo Musical: O bom menino - Carequinha (Arrelia)
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