No livro Dicionário brasileiro de provérbios, locuções e ditos curio-sos, de R. Magalhães Júnior, citando Donato, (p.8) afirma que pro-vérbios é proclamar vivências. Ditados e ditos são, de fato o espíri-to e o recurso da sabedoria popular. Revela a sabedoria, a cautela, à experiência, descobre a mágoa, insinua a malícia, acentua o re-cato. E em tudo é sumário e doméstico, empregando conceitos breves e linguagem corrente. Em memória a minha mãe, Noemia Lucena, cujas recordações me fazem lembrar, em cada frase sua, um provérbio passo a contextu-alizar alguns dos seus provérbios, construindo esta estória de Zé e Zefa, um casal cuja vida nos lembra a história de muitos casais. “Quem vê a barba do seu vizinho arder põe a sua de molho, porém, gato escaldado de água fria tem medo.” Zé chegou na sua casa da forma como falava a sua tia Zê, “com as quatro letras do alfabeto: T-tinindo, X-xispando, V-voando e Z-zu-nindo”. Bateu na mulher e nos filhos, quebrou tudo dentro de casa e ainda falou: Zefa, eu estou lhe batendo porque você só quer viver “ba-tendo de pernas no mundo, pois a mulher e a galinha não se deixa passear, a galinha o bicho come e a mulher dá o que falar”. Zefa chorou, berrou, esperneou e respondeu em represália: “cobra que não anda não engole sapo”. Zé, ainda mais indignado, bateu dobrado em Zefa e disse: “quem come do meu pirão prova do meu cinturão”. Zefa desmaiou e adormeceu. Como “o amanhã é outro dia”, Zefa ao amanhecer já havia esque-cido tudo. Afinal, segundo o adágio popular, “pancada de amor não dói e se dói me dá prazer”. Zefa era uma autêntica masoquista. Vivia com Zé há quinze anos e já havia se acostumado com as suas bebedeiras. Pancadarias e gritos. Na ausência de Zé ela falava: “Não tenho medo de homem nem do ronco que ele dá, besouro também ronca vai se ver é mangangá. Não tenho medo de homem nem do ronco que ele tem, besouro também ronca vai se ver não é ninguém”. Mas quando Zé chegava bêbado, Zefa “tremia mais do que vara verde” e dizia: Vou me calar, pois, “bico calado não entra mosqui-to e gato escaldado de água fria tem medo”. Zé e Zefa tinham dois filhos que, apesar dos desajustes da família, eles acreditavam que “trabalho de menino é pouco mas quem o perde é louco”. Por isto os ensinou a participar dos trabalhos, ajudando em casa e a Zé na oficina. Isto quando Zé não estava bêbado, pois quando não bebia era um carpinteiro de mão cheia. Uma das mágoas de Zefa era ter um marido carpinteiro e não ter uma cama para dormir. Desabafava as suas mágoas dizendo: “Casa de ferreiro, espeto de pau”. Zé respondia: “Tempo é ouro e ouro não se perde, não trabalho de graça pois quem trabalha de graça é relógio e besta é caju que nasce de fundo para cima”. Só faço as coisas por dinheiro. Fora da bebedeira, Zé era um homem de poucos amigos, mas quan-do bebia apareciam inúmeros amigos de farra. Ele dizia-se rico e pagava bebida para todos. “Todo bêbado é rico e valente”. O seu maior amigo era um velho vira-latas chamado Banzo. Ele dizia: “Mas vale um cachorro amigo do que um amigo cachor-ro”. Banzo demonstrava o seu amor e reconhecimento lambendo-lhe às mãos. Com os amigos, decepcionara-se desde o dia em que, tendo toma-do um porre daqueles, eles foram para casa deixando-o abandoado com a cara enterrada no vômito. Apesar de Zefa sempre dizer: Zé, não se acompanhe desses bêba-dos, “pois dize-me com quem andas e eu te direi quem és”. Para que ele entendesse o que a mulher dizia, foi preciso passar por essa decepção. Passou a noite na sarjeta e quando acordou no outro dia, pensou: “O mundo inteiro não vale o meu lar”, indo de imediato para o aconchego da esposa. Arrependido, ressacado, cheirando a vômito e extremamente frá-gil, um verdadeiro trapo humano no fundo do poço, Zé estava aberto a ouvir a esposa, ou talvez, sem forças para reagir. Foi esta a oportunidade de Zefa desabafar, falar tudo o que sentia. Disse: - “Quem semeia vento colhe tempestade”, bem feito para ver se assim você acorda, homem de Deus. Zé calado estava calado ficava, mas “quem cala consente”. Às vezes o nosso silêncio fala mais alto do que mil palavras. O deserto fala ao nosso coração. Zé estava vivendo o seu deserto interior... Zefa ainda jogou na cara que “filho de gato é gatinho” e que ele talvez tivesse herdado do pai aquele maldito vício – o alcoolismo. Lembrou então dos conselhos da sua mãe que dizia: Zefa, não casa com o Zé! Ele pode puxar ao pai. Mas como “moça quando quer casar, só não casa com carrapato porque não sabe qual é o macho”. Zefa sempre argumentava que, quando casasse, Zé mudaria. “A es-perança é a última que morre”. Zefa casou e quebrou a cara. Caiu “no conto do vigário”, isto é, nas promessas do Zé. Casamento com festa, um monte de testemunhas e tudo mais que toda noiva deseja. Logo começaram as lutas e Zefa lembrava sua mãe e de uma frase que ouvira um dia: “Se casamento fosse bom não precisava de tes-temunha”. Existem, porém, casamentos onde os dois são “duas almas em um só corpo”, o que não foi o caso de Zefa. Faltou vontade e coragem para Zefa acabar o casamento, seguindo as orientações da mãe. Zefa agiu apenas pelo coração e este a traiu. Afinal “se conselho fosse bom não se dava, se vendia”. Para uma coisa serviu o desabafo de Zefa. Zé não mais quis sair para beber com os companheiros de farra. Bebia sozinho. Quando Zefa o aconselhava a parar de beber, ele dizia cantarolan-do: “Eu bebo sim e estou vivendo, tem gente que não bebe e está morrendo”. Mas com Zé isto não ocorreu, pois o seu corpo definhava, o fígado estava comprometido, os valores morais abalados e o espírito en-fraquecido. O seu rosto era o espelho da sua alma doente. As pessoas sem sentimentos, quando o viam, diziam: “Lá vem o alambique”. Bebe mais do que alambique. Certo dia, Zé teve uma crise de cirrose hepática, doença que con-traíra de tanto beber, indo parar no hospital. De lá não mais voltou para o seu lar, para sua família. “Bateu das botas e foi morar na Cidade de Pés Juntos”. E Zeca, sozinha com os dois filhos, “chorou umas poucas lágrimas de crocodilo, tocou o barco para frente e deu a volta por cima”. Com pouco tempo arranjou um emprego “dando uma guinada de 180 graus em sua vida”. Dizia: “É melhor estar só do que mal acompanhada”. Zé e os problemas com os quais passou haviam ficado lá no passa-do. Zefa, após algum tempo, arranjou um novo casamento com um co-roa cheio da grana que morria de amores por ela. Quando alguém falava do seu passado, ela dizia: “Se algum dia eu fui pobre já não me lembro mais” e as pessoas respondiam: “mor-rem uns para dar vida a outros”. Zefa, no seu novo lar, tinha a vida que pedira a Deus e razões de sobra para que tornasse o seu passado enterrado, juntamente com o Zé, fazendo, assim, parte do mundo dos mortos.
Ninita Lucena
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