Abílio era uma dessas pessoas
extremamente apegadas à vida.
Recusava-se a sequer admitir que um dia
teria que partir.
Não negava a inevitabilidade da coisa, pois não
desconhecia que jamais “ficaria para semente”, mas sempre ponderava que
esse dia teria que demorar muito, pois ele queria fazer tudo aquilo que
imaginava fazer.
E que não era pouco...
Principalmente, dizia que
“não queria deixar troco”, ou seja, pretendia retribuir a todos o que lhe
fizessem, seja de bom, ou de mau.
Assim ia vivendo.
Como
procurava ser coerente com suas ideias, sempre agia com a maior
sinceri-dade possível, seja elogiando, seja criticando a quem quer que
fosse.
As poucas vezes em que, por questões, seja hierárquicas, seja
de daquilo que se diz “inconveniente”, era obrigado a mascarar suas
opiniões, ficava possesso.
Xingava-se intimamente, apenas para
“acertar as contas” consigo mesmo.
Contudo, como sói acontecer, ele não
foi atendido em seus desejos.
Sofreu um enfarte fulminante, e partiu
desta para melhor de uma maneira súbi-ta, sem que sequer tivesse tempo para
raciocinar e entender o que lhe estava acontecendo.
Em seu
entendimento, estava assistindo à final de campeonato, e seu time mar-cara
o gol da vitória nos últimos segundos de jogo.
A intensa alegria
fê-lo sentir aquela dor esquisita no peito, mas da qual se recu-peraria em
pouco tempo, “como, aliás, aquela vez no ano passado”.
Só que desta
vez, não houve a recuperação.
Apenas Abílio não estava aceitando aquilo,
pois ainda não tivera tempo da fazer tudo aquilo que queria.
Faltava-lhe
muitas coisas para fazer.
Faltava dizer umas certas verdades a algumas
pessoas, que sempre foram extre-mamente falsas em seu ponto de vista.
Faltava dizer mais constantemente seu amor por sua esposa e filhos.
Faltava, principalmente, reconhecer que não era perfeito, e que cometera
muitos erros na vida.
Agora, eis Abílio
em seu último leito, pronto para a viagem sem volta.
Ei-lo deitado em seu caixão, assistindo
àquele infindável desfile de caras compungidas, algumas sinceras, outras
nem tanto, e outras que mal conseguiam disfarçar sua satisfação com o
ocorrido.
E justamente essas últimas, tiveram o condão de despertar
naquele corpo sem vida, a vida em seu espírito rebelde.
A cada “era um
bom homem”, ou “será uma perda sentida”, dito de maneira insincera, seu
espírito se rebelava, e fazia-se entender, soando como uma voz aos ouvidos
daquela pessoa, uma frase habitual, que ele dizia sempre: “Deixa disso,
safado, você ta é alegre com isso... nunca foi com a minha cara...”
Obviamente o “mentiroso” assustava-se com aquela “voz” que ouvia, e
retirava-se contrafeito.
Algo que deixava Abílio satisfeito, sempre foi
a sinceridade das pessoas a seu redor.
Detestava o ’puxa-saquismo”.
Quando viu seu velho inimigo Antenor se aproximando, preparou-se para mais
uma falsa expressão de pesar.
No entanto, este disse em alto e bom som,
que apesar de achar que o mundo ficaria melhor sem essa figura antipática,
sempre apreciara sua maneira franca de se expressar.
Nunca gostara dele,
mas sentiria sua falta, da mesma maneira que sentimos falta de uma unha
encravada... é aquela dor que nos faz sentir vivos.
Incredulamente,
Antenor sentiu-se abraçado, e “ouviu” o agradecimento de Abílio, pela
sinceridade de suas palavras.
Quando Ernestina, sua esposa chegou-se
toda chorosa, ninguém entendeu porque ela começou a sorrir.
Ao olhar
para o marido, “sentiu-se” abraçada e beijada com um carinho que sempre
desejara, mas nunca tivera, e “ouviu” dele, a mais linda declaração de
amor que jamais ouvira na vida.
Sentiu-se feliz como nunca se
sentira antes, por ter ainda sentido sua presença dizendo-lhe aquelas
lindas palavras de amor que sempre achara que ele queria dizer-lhe, mas
não conseguia, por sempre manter aquela aparência de uma sinceridade
rude.
Assim Abílio, depois do inesperado de sua partida, conseguiu ter
uma visão “do outro lado”, confirmando algumas coisas, e consertando
outras.
Mais ainda, quando seu grande amigo Ovídio, que sempre tivera
muito amor por Ernestina, sem jamais deixar transparecer em atitudes ou
qualquer outra coisa esse sentimento, mas que nunca se casara,
aproximou-se para se despedir do amigo, “ouviu” dele um pedido para que
tentasse se aproximar da viúva, e a amparasse com seu amor e seu carinho
sempre sufocados.
Ovídio, sem saber o que fazer olhou para
Ernestina...
Ambos olharam para Abílio, e o viram nitidamente dar um
sorriso de aprovação...
Mesmo do “outro lado...” Abílio continuou sendo
a mesma pessoa coerente que sempre fora...
Sincero, e firme em suas
ideias e propósitos, jamais agindo com falsidade.
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