Num grande hospital do Rio de Janeiro, o plantonista do dia, aten-de seus
pacientes na emergência, quando chega uma ambulância trazendo um homem
ferido, atingido por uma bala perdida, duran-te uma troca de tiros dos
marginais com a polícia, num assalto à uma joalheria.
Depois de atender
ao ferido, o plantonista se reúne com a equipe médica do hospital e
decidem que é preciso uma intervenção cirúrgica, pois percebem um
sangramento maciço e imediatamente o homem é conduzido ao Centro
Cirúrgico.
Doutor Vladimir Barreto é chamado e convoca a sua equipe para a
cirurgia.
Entra na sala onde o seu anestesiologista já ministrou as
drogas para que o ato cirúrgico seja suportável e sem dor.
O Dr. Vladimir Barreto, cirurgião há quase vinte anos, está acostu-mado a
atendimentos emergenciais e, como sempre, seu trabalho é impecável.
A
cirurgia é um sucesso e seu paciente está fora de perigo, mas ficará
paraplégico, devido ao lugar de onde a bala foi retirada.
Depois de descansar da cirurgia, ao conversar com sua assistente,
ele soube que seu paciente mora no morro e que seu nome é Teo-doro
Moraes.
Ao escutar este nome, Vladimir leva um susto, e de repente, é
como se estivesse voltado ao passado.
E sem sentir, re-pete um nome
várias vezes em voz alta: “Téo”!
- Não, não pode ser seu amigo Téo!
Pensa ele.
Não existe só um Teodoro
no mundo.
Mas, Teodoro Moraes e que mora no morro...
Não é possível!
Mas, pensando bem, seu rosto não lhe é estranho.
Parece conhecido.
Mas
faz tanto tempo...
Eles eram tão crianças...
Vladimir parece reviver todo aquele tempo em que ele saia de seu
apartamento na cidade e ia brincar com seus colegas do morro que existia
perto de sua casa.
Téo, Vlad e Held, eram o trio inseparável que vivia aprontando todas e
azarando as gatinhas do morro.
Tá certo que ele sempre levava vantagem
com as meninas, pois, como a condição financeira de sua família era bem
diferente das famílias de seus dois amigos, ele estava sempre bem mais
arrumado, tinha bicicleta, estava sempre com um dinheirinho no bolso e
até sabia falar mais bonito que seus amigos, pois estudava em escola
particular.
E Vladimir se perde em seus pensamentos: Téo era companheirão,
amigo mesmo, destes que se prejudicam para ajudar um amigo.
Também era
muito educado, pois seus pais, o seu Basílio e a dona Lolita eram muito
severos e viviam dizendo que pobreza não era sinônimo de má educação e
assim, o Téo aprendeu desde cedo a dizer por favor, obrigado, com
licença e todo mundo lá no morro dizia: “um
dia pode até ser um
"doutor",
de tão educado que é esse menino”.
Helder Assis não gostava do seu nome, por isso todos no morro o chamavam
de Held.
Garoto de modos grosseiros, demonstrava nas suas atitudes o
comportamento antissocial do seu pai, um homem envolvido com os piores
elementos que frequentavam o morro.
Helder, no fundo, tinha um bom
coração, que ele teimava em es-conder pela revolta de ter visto sua mãe
ser assassinada, quando ainda era bem pequeno.
Só vivia arranjando
encrenca com todo mundo.
Ele se achava o “tal” no morro.
Também pudera,
seu pai era o manda chuva de lá.
Seu Ferdinando era conhecido como Cascalho.
Todo mundo respeitava o Cascalho e ele quando aparecia no
morro durante o dia era prá dar alguma ordem ao seu bando, pois ninguém
sabia onde ele se escondia, já que vivia sendo procurado pela polícia.
Held
admirava o pai e dizia que um dia, quando seu pai morresse, ele seria o
chefe do bando e então Vladimir e Téo começavam a rir dizendo que ele
nunca ia ficar no lugar do pai, pois ninguém teria medo dele ali no
morro.
Seu Ferdinando não gostava disso e dizia que “filho
de peixe, peixinho é”
e que ele queria deixar o filho em seu lugar, quando morresse, pois, se
ele não conseguisse vingar a morte da mulher que amava, seu filho
vingaria o sangue derramado da sua mãe.
Vladimir estava ali, sentado em seu consultório e sua cabeça lhe
trazendo tantas recordações que começou a lembrar de sua vida.
Sua mãe,
moradora do morro, ainda muito nova, engravidou.
E sem condição de criar
a criança, assim que ele nasceu, o deixou na porta de um advogado
conhecido e que ela sabia que teria como criá-lo.
Deixou junto ao recém
nascido uma carta pedindo que o casal, que ainda não tinha filhos,
ficasse com a criança, pois ela não sabia o que fazer com o menino.
Sem
se identificar, sumiu e nunca mais procurou saber de seu filho.
Desde o primeiro instante Percival e Odete Barreto perceberam que aquela
criança era o presente que Deus estava lhes entregando, pois já havia
algum tempo que eles tentavam ter um filho e Odete não havia conseguido
engravidar.
Eles acolheram aquele pequeno ser com tanto amor, que nunca
esconderam que Vladimir era adotado e sempre disseram que ele era seu
filho do coração.
Vladimir era uma criança feliz, tinha uma família que o amava.
Seus
pais, sempre presentes, o cobriam de carinhos e atenção.
E como não
tiveram mais filhos, Vladimir preenchia a vida deles completamente.
Sua infância, como a da maioria das crianças, foi povoada de so-nhos e de
muitos brinquedos, mas o que Vladimir mais gostava era de ir brincar com
seus “melhores amigos”: Téo e Held.
E todos os dias ele subia o morro,
depois que chegava da escola e passava a tarde correndo nas ruelas
estreitas e escuras daquela favela onde ele havia nascido.
Hoje, ele tem
certeza que suas raízes falavam mais fortes e, por isso, seu pai,
permitia que ele conhecesse a vida daquelas pessoas tão sofridas e
batalhadoras, até para que ele entendesse os motivos que fizeram sua
mãe agir do jeito que agiu.
Até completar 10 anos, Vladimir dividiu sua vida, com seus amigos do
morro.
Depois, como seu pai havia melhorado financeiramente, a família
mudou-se para um bairro menos perigoso, pois, ali perto do morro, eles
já não tinham mais tanta segurança, pois a criminalidade havia crescido
bastante.
A partir daí sua vida mudou muito.
Sua escola era bem melhor,
proporcionando uma educação bem mais abrangente, seus amigos eram seus
colegas de escola, do curso de inglês que começou a fa-zer e também do
condomínio onde moravam.
Porém, nenhum deles conseguiu tomar o lugar
daqueles que ele jamais esqueceu: Téo e Held.
O tempo passou e nunca mais soube de nenhum dos dois.
Um dia, escutou
seu pai falando com sua mãe, sobre um traficante que a polícia havia
encontrado morto em um matagal num bairro distante e na conversa eles
falaram que deveria ser o seu Ferdinando, o Cascalho lá do morro, pois o
nome coincidia com o dele: Ferdinan-do Assis, o Cascalho.
O tempo passou e Vladimir se formou em medicina para orgulho de seus
pais.
Começou trabalhando em hospitais públicos, participou de vários
congressos e foi chamado algumas vezes para proferir palestras em
universidades sobre a sua especialidade.
Depois montou seu próprio
consultório e com o tempo o transformou em uma clínica, hoje muito
conhecida em todo país.
Tem uma vida estável, porém nunca esqueceu que
suas raízes estão fincadas no morro e que no seu corpo corre o sangue de
pessoas como aquelas que ele aprendeu a respeitar.
//////
Seu Percival Barreto, à noite, gosta de assistir ao telejornal da sua
cidade e em meio às notícias, uma lhe chamou mais atenção: “Em um
confronto com a polícia durante um assalto a uma joalheria, foi
alvejado e morto o traficante Helder Assis, mais conhecido como
Peixinho, seu corpo já se encontra no Instituto Médico Legal...”.
Sabendo da amizade que unia seu filho ao rapaz morto, Percival resolve
ligar para Vladimir e avisar sobre o acontecido:
- Oi pai, fala.
- Filho, acabei de escutar uma notícia no jornal e achei que você
deveria saber.
- O que foi que aconteceu?
- Lembra
daquele seu amigo lá do morro, o Held?
- Claro, pai.
- Ele morreu hoje, numa troca de tiros com a polícia, durante um assalto
numa joalheria...
Pobre menino!!!!!!!
Seu pai ainda continuou falando mais sobre o assalto, mas Vladimir
disse que estava ocupado, agradeceu a ligação e desligou.
Seus pensamentos embaralhavam em sua mente: um assalto numa joalheria,
troca de tiros com a polícia, bala perdida, Held morto, Téo
paraplégico...
Como ele queria que tudo isso não passasse de um sonho! Mas, não, a
realidade ali está... à sua frente.
Tantos anos sem saber de seus amigos
e no mesmo dia a vida lhe devolve seu passado e o coloca diante de uma
realidade cruel.
Um está morto, o outro paraplégico e ele ali, chorando
o triste caminho que foi reservado para os dois.
No mesmo instante pegou o seu celular e fez uma ligação.
E com a voz
embargada, falou:
- Pai, obrigado pela vida que você me ensinou, pelos caminhos que você
me mostrou e pelo imenso amor que eu recebi de você.
FIM
Lenir Moura