O Monte das Águias
 


Da aldeia de Alambra, o Monte das Águias dista quase uma légua e com um ribeiro cruzando o caminho. É o Ribeiro das Águias, seco no verão, mas um danado nos dias de invernia puxados a chuva.

José das Águias, conhecido nas redondezas por Ti’Zé das Águias, era o único habitante do Monte.

Seguramente, José era o seu nome. Nascera num tempo em que os sobrenomes raramente eram indicados e se sucediam aos nomes próprios, a quando do registro de nascimento. O sobrenome das Águias deveria ter sido tomado de empréstimo ao Monte assim designado, onde nascera e sempre vivera, excetuados os anos de cumprimento do serviço militar.

José das Águias era um veterano da Grande Guerra de 1914-18. Da Flandres trouxera a memória ensanguentada da violência dos ho-mens e as consequências, não muito graves, dos gases alemães. A sua constante companheira era uma caçadeira «Liegeoise», calibre 16, e o Lampeiro, um fiel cão de caça, sentido deveras, dando sinal de intruso a grande distância.

Lampeiro era um cão feliz. Se era o melhor amigo do dono, também tinha no dono o seu melhor amigo. Tinha vida livre e tra-tamento privilegiado. Dormia onde queria, sob telhas ou ao relen-to, conforme decidisse, e comia com o dono, numa tocante parti-lha igualitária. A sua ocupação era estar atento aos intrusos e pa-rar uma ou outra peça de caça.

Lampeiro raramente ia à aldeia. O dono confiava-lhe a guarda do Monte sempre que se ausentava.

Ti’Zé das Águias ia sempre ao romper do dia. Lá fazia o seu avio, petiscava na venda do Jerônimo e regressava pouco depois, che-gando sempre ao Monte antes de anoitecer. Era uma hora e meia de caminho na ida e uma hora e meia de caminho no regresso. Ca-minhava bem, como bom caçador que era, mas a passada ficara mais lenta, vergado às limitações que a idade trouxera.

Ti’Zé das Águias nunca casara. A sua ocupação fora sempre zelar pe-lo Monte. E assim continuaria, pois era essa a sua vontade e o interesse do dono do Monte, um doutor que vivia na cidade e ali se deslocava, de vez em quando, quase que só nos tempos da caça.

O mês de Dezembro vinha frio e sem chuva. A nortada assobiava. Ti’Zé das Águias acendia a lareira antes do amanhecer. Aquecia água numa panela de ferro talvez mais velha do que ele. Fazia café, o tradicional café de mistura, que trazia da aldeia. Depois, bebia uma caneca do café ainda bem quente e comia pão e linguiça, habilmente cortados com a navalha.

Sentado a seu lado, Lampeiro sempre petiscava com o dono.

Apenas o tempo chuvoso prejudicava as idas à aldeia. Ti’Zé das Águias não confiava no ribeiro nem na ponte de madeira, tão baixa que, à mais pequena enxurrada, a água lambia o tabuleiro e a es-trutura gemia aflita. Lembrava-se que, quando mais novo, várias vezes passara a ponte com o tabuleiro completamente coberto de água. Agora, a velhice aconselhava-lhe a maior prudência.

Já se vivia a quadra do natal. Na aldeia, as mulheres andavam pre-ocupadas com as crianças. Vivia-se, mais uma vez, o período de gastarem o que mal podiam numas roupas para elas, novas ou transformadas. Era a memória do menino que nascera há quase dois mil anos. E era a memória dele que projetava um carinho acrescido sobre as suas crianças.

Ti’Zé das Águias entendia o natal assim: o tempo das crianças.

Ouvira falar vagamente da história daquele menino. Em outro tem-po, quando tinha de ir à vila tratar de alguns assuntos do Monte, vira a animação na quadra do natal; mas isso fora há muito, ainda o patrão era vivo e a agricultura na herdade era de grande azáfa-ma. Depois da morte do patrão, a situação modificara-se. O menino Luís era doutor e não tinha tempo para olhar pela herdade. Não tinha tempo e nem era homem do campo. Quase só o via pelas rolas, em Agosto; e, depois, quando abria a caça geral, em Outu-bro. E só aos fins de semana.

Naquele fim de tarde e antevéspera de natal, Lampeiro deu sinal. Ti’Zé das Águias veio à porta ver o que se passava. Avistou uma mu-lher, ainda longe, que caminhava vagarosamente. Esperou que ela se aproximasse, para saber quem era. E ficou surpreendido quando verificou que não a conhecia. Quem seria? E o que quereria dele? E foi ainda a braços com a interrogação que a mulher chegou.

Sem temor, a mulher saudou-o com um boa tarde, senhor!

Ti’Zé das Águias correspondeu à saudação e esperou que ela lhe dissesse ao que ia.

Senhor, começou a mulher, não me conhece, mas sou pessoa de bem e venho pedir-lhe agasalho; e enquanto aqui estiver, poderei dar uma ajuda na casa.Ti’Zé das Águias convidou-a a entrar e a aquecer-se na lareira. A mulher agradeceu e entrou. Pousou a um canto a trouxa de roupa que trazia e foi aquecer-se.

Sentados, em silêncio, olhavam o lume. Passados uns largos minu-tos, Ti’Zé puxou da navalha e arretalhou umas bolotas que a mulher dispôs sob a cinza escaldante.

Assadas as bolotas, comeram com gosto e falaram da Vida e das suas vidas.

Ti’Zé ficou sabendo que a mulher, uma mulher exausta das incle-mências da existência e precocemente envelhecida, se chamava Maria do Céu, que era viúva, sem filhos, que andaria pelos sessenta anos, e que decidira abandonar os subúrbios da cidade e regressar para sempre ao Sul, sem nada de seu e sem destino definido.

Lampeiro olhava o lume e achava normal toda a situação.

No dia seguinte, a mulher levantou-se com a aurora e começou a tratar da casa. Quando Ti’Zé apareceu, pouco depois, já a panela de ferro chiava na lareira.

Ti’Zé olhou, satisfeito. E disse de si para si: temos mulher! A mu-lher, ao vê-lo, deu-lhe os bons dias e disse: esta casa está preci-sando duma barrela ao meu jeito. E, logo à noite, de uma ceia, porque é véspera de natal. Ti’Zé correspondeu à saudação e sorriu. Depois, sentou-se à lareira e comeu, como habitualmente: uma caneca de café e uma fatia grossa de pão com linguiça. A mulher acompanhou-o na refeição. E Lampeiro teve, pela primeira vez, duas pessoas a repartir com ele comida e carinho.

Lá fora, o dia resplandecia sob o sol nascente e um céu todo azul. Nos álamos, a passarada gorjeava, num hino de amor à vida. As ga-linhas, sempre madrugadoras, há muito que andavam por ali. Saíam e recolhiam a seu bel-prazer, sem peias.

Ti’Zé das Águias saiu, para ver o dia e inspeccionar todas as redon-dezas da habitação. A tranquilidade era plena. Apenas a nortada assobiava. Era o nordeste, trazendo de Espanha aquele frio seco.

Desceu uns metros até ao poço. Bem perto, o quinchoso, muito bem tratado. Ali, Ti’Zé tinha as suas verduras, os cheiros e algumas árvores de fruto. Só comprava na aldeia o que a terra não dava.

Regressado a casa, pediu a Maria que o acompanhasse, para lhe in-dicar o quinchoso, o poço e o galinheiro. Ela seguiu-o, satisfeita. Percebia que encontrara um lar e que a vida lhe sorria.

Cerca do meio-dia, uma açorda de poejos com bacalhau e azeito-nas novas foi a refeição. Comeram devagar, entre palavras arras-tadas e silêncios prolongados. A mulher falou da infância triste, da adolescência suada nos campos, e do seu homem, com quem se juntara aos 19 anos, da ida, com o seu Tóino, para os subúrbios da cidade grande, do acidente que o vitimou, na construção civil, e da sua decisão de regressar ao Sul, sem eira nem beira, confiando no destino. Ti’Zé das Águias falou do pai, caseiro no Monte, e da mãe, dois mouros de trabalho. Ali nascera e ali ficara como ajuda do pai. Depois, a guerra levara-o. Quando regressou, continuou como ajuda até à morte do pai. A mãe pouco tempo sobreviveu ao com-panheiro. Ficou, então, sozinho, como caseiro. Ensinou ao menino Luís, o filho do patrão, os segredos e mistérios da vida animal e vegetal, a caçar, as andanças das aves de arribação e outras tantas coisas do campo. O menino foi crescendo e estudando. Saiu doutor e fixou-se na cidade. Depois, aconteceu a morte do patrão e o fim da agricultura. O rendimento da herdade era, agora, a cortiça, a lenha e as pastagens. Ficara no Monte para olhar por tudo.

Já o dia declinava quando a mulher levantou a mesa e lavou a lou-ça. Depois, foi tratar da ceia para a longa noite de Inverno.

Ti’Zé das Águias saiu para o terreiro. Ali esteve até ao lusco-fusco. O vento amainara e o pôr de sol era uma aguarela incendiada.

Lampeiro dividia o seu tempo entre a casa e o terreiro. Em casa, sentado à lareira; no terreiro, ora andando de um lado para outro, farejando e olhando, ora a ventos, procurando perceber o que se passaria nas redondezas, ora estiraçado ao sol que, baixo, quase nada aquecia.

Ti’Zé das Águias, regressando a casa, foi sentar-se à lareira. Lam-peiro seguiu-o.

Maria preparava para a ceia um frango de cabidela. Haveria figos secos e nozes à sobremesa. Passariam a meia-noite à lareira.

Um manto de paz descera sobre o Monte. Maria foi olhar o tempo. Voltando para dentro, disse: o céu está todo limpo e cheinho de estrelas. Teremos uma noite linda.

Ti’Zé assentiu com um gesto.

Diligente, Maria tratava de alindar a mesa. Ti’Zé ajeitou o lume, levantou-se e foi lavar as mãos. Depois, sentou-se à mesa, para jantar. Lampeiro, seguindo o dono, sentou-se a seu lado. Maria sentou-se também à mesa e serviu a janta.

Ti’Zé, enquanto comia, elogiou: Ah, Maria, há quantos anos eu não provava uma cabidela assim! Desde a morte da minha mãe, acho eu. Maria, agradecida, respondeu, com um sorriso: Ainda bem que está ao seu gosto, Ti’Zé.

Lampeiro, sentado entre ambos, olhava, ora para um, ora para outro, seguindo o diálogo.

Puxando do seu velho relógio de algibeira, Ti’Zé exclamou: aqui estamos ceando e as horas correndo. É meu costume deitar-me cedo, mas, hoje, teremos de passar a meia-noite a pé, pois o tal menino dizem ter vindo ao mundo a essa hora.

É verdade, confirmou Maria. Assim reza a tradição e também lá na cidade assim ouvi. E prosseguiu: Lá na cidade era uma canseira, to-da aquela gente de um lado para o outro, comprando roupas e brinquedos para as crianças. Era um grande negócio para as lojas!

Ti’Zé atalhou: Pois, deveria ser. Vi essa canseira na vila. Não seria igual, mas teria as suas parecenças. Aqui, na aldeia, as coisas não são assim. O povo mal ganha para o sustento. E as crianças terão de se sujeitar, coitadinhas!

Tadinhas delas, lamentou Maria. Dizem que somos todos iguais, mas o natal e tudo o mais está sujeito à força do dinheiro. E também dizem que o menino nasceu pobrezinho para dar o exem-plo...

É verdade, também ouvi dizer isso, confirmou Ti’Zé das Águias, mas, pelos vistos, o exemplo deste menino não medrou. Isto de ser rico e querer ser pobre é uma história muito mal amanhada! Maria, sorrindo, rematou: Se fosse bom ser pobre, não haveria ricos... Ti’Zé das Águias sorriu também e disse: É bom conversar destas coisas da Vida, mas não adianta. A força está nas mãos de quem manda. O povo vai esperando por dias melhores, mas ninguém sabe quando será. Sabe, Maria, quem tem a barriga cheia não se lembra de quem tem fome.Maria confirmou: É verdade e esse ditado diz tudo. Diz-se agora que as coisas vão mal lá para as Áfricas e que já mandaram soldados para lá. É mais uma desgraça que vem aí! Ti’Zé das Águias sentenciou: Os homens não se entendem. O que um quer, o outro não quer. E o povo é só penar! Sabe uma coisa: se só houvesse dois homens, um seria contrabandista e o outro guarda-fiscal. É assim, não se entendem, não há união. Eu sempre vi o mundo assim. E vou morrer sem ver mudança. Já não me adianta esperar. Pode ser que os mais novos ainda vejam alguma coisa de melhor. Eu já não tenho idade para lá chegar. As horas passavam e a meia-noite estava pres-tes. Passaram da mesa para a lareira. Maria levou um taleiguito de figos e Ti’Zé começou a partir as nozes.

Maria comentou, divertida: Já viu que eu me chamo Maria e vos-mecê se chama José? É verdade! Só falta aqui um menino... Ti’Zé recomendou: Juízo, Maria! Dizem que é a Sagrada Família e a gen-te não é assim.

Maria apressou-se a esclarecer: Foi só uma brincadeira, não ofendi ninguém.

Tá visto que não, reconheceu o velho. E, brincadeira por brinca-deira, o seu nome é Maria do Céu e o meu é José das Águias. E as águias voam por essas alturas além... Contrariamente ao que Ti’Zé poderia supor, a mulher não aderiu ao gracejo. Ficou pensativa e inquieta. Depois, num murmúrio, arriscou: Ti’Zé, até parece que foi o destino que me trouxe a pedir-lhe agasalho e fez com que vosmecê mo desse!... Ti’Zé das Águias olhou-a fixamente. E assim ficaram, olhos nos olhos, como que querendo cada um sondar o que o outro pensava. Parecia que o tempo parara. Até que Maria do Céu, despertando daquele enleio, disse, arrebatada: É isso, Ti’Zé! Foi um milagre! O nosso milagre de natal!

José-Augusto de Carvalho
Lisboa, 12 de Dezembro de 2009



 

 
Anterior Contos Menu Principal