A ceifa
 


Portugal a Sul do rio Tejo. Terras do Alentejo e do Algarve. Do seu povo se diz: muitos mouros, alguns judeus e o resto sabe Deus!... (
Talvez um dia eu fale do Portugal a Norte do Rio Tejo... Talvez.)

Ano de 1951. Ainda está bem presente, na memória de todos, o re-curso às senhas para se poderem comprar muitos dos artigos de primeira necessidade. Consequências da guerra que findara havia pouco e, dizia-se, das exportações para os alemães de gêneros re-tirados à boca deste povo já tão carenciado! A falta de açúcar le-vava muitas pessoas a adoçarem com sal o café e o chá; determi-nou, noutras, a dispensa deste adoçante. O quotidiano de cidades e vilas é resignado. Nas aldeias e nos campos do Alentejo, a luta pela sobrevivência é dolorosa e pérfida. É uma luta desigual. Do-lorosa porque o trabalho braçal é violento; pérfida porque os camponeses, minguados de direitos, vivem na servidão. Ajustam as jornas de miséria com os senhores das terras. Há tempos de tra-balho e tempos de boa vida. Com esta expressão irônica, preten-dem os camponeses designar os dias, semanas, meses sem traba-lho. Doem as manifestas desigualdades nas relações de poder entre agrários e camponeses. O Poder Político, autoritário e ao serviço dos poderosos determina a sujeição dos assalariados. A censura prévia aos meios de comunicação escritos e falados amordaça a informação. A polícia política, a P.I.D.E. — Polícia Internacional e de Defesa do Estado — é uma poderosa força dissuasora; e os poucos que se erguem em defesa dos seus legítimos direitos são detidos, torturados e muitos condenados em tribunais especiais, os Tribunais Plenários, por atentarem contra a segurança do Estado. Portugal é isto neste ano de 1951! A vitória da Democracia, em 1945, foi um sonho que não passou os Pireneus!

Corte da Velha é um Monte de vários moradores. Ponto de encon-tro de camponeses alentejanos e algarvios desta ceifa em que estou. O traço de união é estabelecido pela Dores, algarvia-mulher dum pastor alentejano. Ajustada a empreitada, o rancho algarvio terá de fazer-se ao caminho. A pé. A seara já está à sua espera. É numa herdade para as bandas de Ficalho. Do outro lado da fron-teira, Rosal de la Frontera, ainda lacerado pela Guerra dita Civil (
1936-39). Quantas histórias por contar da tragédia que enlutou Espanha! Histórias desta Ibéria toda, toda sujeita à mesma conde-nação!

Sudeste algarvio. Terras do conselho de Alcoutim, a histórica vila da margem direita do Guadiana, dia e noite enamorada de San Lú-car, o fronteiriço pueblo espanhol da margem esquerda do rio.

Terras de Serrania olhando as planuras do Alentejo, a Norte. A Fou-pana leva um fio de água neste quente mês de Maio. Mais além, na aldeia, o lusco-fusco mal permite perceber a azáfama que vai nas casas dos ceifeiros acertados para a empreitada. A partida será ao romper da madrugada. Das serranias algarvias às planuras do vizi-nho Baixo Alentejo! O trigo maduro anseia pela foice! Os homens falam da vida e da esperança de ganharem uns magros escudos; as mulheres ultimam os derradeiros preparativos. Anoitece. Os corpos reclamam umas horas de descanso. Amanhã, a caminhada será lon-ga e dura.

Estremunhado, um galo canta! Na madrugada, empalidece o setes-trelo. Se é certo que não é por muito madrugar que amanhece mais cedo, o rancho terá de encontrar os arrebóis do amanhecer já nos caminhos sofridos e solitários que ligam os conselhos vizinhos de Alcoutim e Mértola. Em alguns momentos, o rancho está reuni-do. São horas de partir. O avô Manuel vai à frente, com um dos fi-lhos. Marca a cadência do passo, com a experiência de léguas ven-cidas nas estradas da vida. Aliás, já todos os membros do rancho sabem que só com um passo cadenciado se conseguem vencer grandes distâncias. É o doseamento do esforço. Avô Manuel quer chegar a Corte da Velha ao cair da noite. Sabe que se conseguir o tempo de 15 minutos por cada quilômetro andado, encontrará um bom andamento. Sabe também que terá de proporcionar paragens, para descanso.

O rancho caminha decidido. É uma jornada de esperança. Para trás ficam as terras que não garantem a todos o pão de cada de dia, ainda que sofridamente suado; em frente ficam as terras que prometem um trabalho sazonal, sempre conseguido em condições de amarga sujeição. Avô Manuel sabe que os camponeses alente-janos não veem com bons olhos esta concorrência dos camponeses algarvios. E também sabe que são os lavradores os únicos a ganha-rem. Mas que fazer? A luta pela sobrevivência é implacável! Ah, como fica clara a palavra clandestina! É a lei da oferta e da procu-ra: se há mais braços do que trabalho, o lavrador regateia até ao tostão. E, aí, o camponês cede: mais vale pouco que nada! E, aí, gera-se o conflito entre os deserdados! E o conflito dos deserdados é o lucro acrescido dos lavradores!

Mértola está a um passo. Avô Manuel, sempre caminhando na fren-te. Vê-se que medita. Medita na proposta do patrão de lhe forne-cer todos os gêneros alimentícios e outros de que necessitar o rancho. Até parece ouvi-lo ainda: É como lhe digo, senhor Manuel, tudo poderá adquirir a crédito, no monte. No final, faremos um en-contro de contas...

Avô Manuel é um homem experiente e atento às armadilhas da vi-da. Percebe o hábil jogo. O lavrador sabe que a lonjura e a falta de um muar impedem-lhe o recurso ao comércio da vila; e sabe tam-bém a aflição por que passaria se sujeito a gastar o dinheiro que não tem. Finório este lavrador! De uma cajadada, mata dois coe-lhos: tem garantida a venda dos produtos e pagará menos pela em-preitada! E como se isto não bastasse, ainda o que a neta lhe disse, há pouco, depois da última paragem, nos Álamos: Avô, aquele ho-mem que estava tirando água do poço disse-me que os lavradores, agora, quando querem parvos, vão buscá-los ao Algarve...

Ao sol da tarde que finda, o rancho vai vencendo os derradeiros quilômetros da jornada. Apenas o ruído cadenciado dos passos ousa quebrar o silêncio destas terras de sujeição e desespero.

A voz melodiosa da neta desperta avô Manuel da meditação:

Se fores ao Alentejo,
não bebas em Castro Verde:
que as fontes cheiram a rosas
e a água não mata a sede...

O sol mergulha, em apoteose, num poente incendiado. Amanhã, a ceifa do pão dos outros!

José-Augusto de Carvalho
22 de Junho de 2006
Viana do Alentejo * Évora * Portugal



 

 
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