O Resgate



        Vinte anos depois, dirigindo um jipe alugado, aproximo-me o mais possível do local a que me destino. A estrada de terra termi-nara abruptamente e o mato alto à minha volta arrefece meu in-tento, mas minha determinação maior suplanta o desafio de conti-nuar meu caminho a pé. Algo sempre imantava meu retorno a este lugar, uma voz suplicante eu ouvia insistentemente a me chamar.

        Guiado pelo instinto, rompo o capinzal, evito espinhos e corto o cipoal, criando uma trilha enlameada pela chuva que acabara de cair. O cabo do facão tende a escorregar-me das mãos suadas, mas buscando forças no âmago de meu cerne aperto-o com determina-ção e supero o cansaço que faz meu peito arfar, agravado pela an-siedade que me invade a alma.

        Quase três horas depois, no limite de minha resistência física, mas coroado de êxito, vislumbro afinal o que procurava. O solar em que nasci e vivi por oito anos na companhia de meus saudosos pais e mais quatro irmãos. O teto que abrigou por décadas minha família, devastada brutalmente pelo infortúnio causado por um bando de celerados.

        Invadem-me recordações daquele nefando dia em que hedion-dos inumanos travestidos de militares, invadindo nosso sagrado lar, arrancaram-nos de lá, colocando-nos em caminhões como se gado fôssemos. Saímos com a roupa que vestíamos e mais nada. Era mui-to pequeno e não pude reagir, oferecendo proteção aos meus pais e irmãos. Seria morte certa, frente às armas que nos eram ame-açadoramente apontadas.

        Interrompi minhas lembranças para adentrar os escom-bros, compostos por algumas paredes chamuscadas que, teimosas e imponentes, ainda se mantinham de pé, como a mostrar que ali, outrora, fora uma morada, o lar de uma família feliz. Os poucos degraus que levavam à varanda estavam cobertos de limo e um ta-pete fofo de folhas mortas completavam o meu cenário de boas-vindas, de feliz retorno. Ultrapassei o umbral da porta apodreci-da da sala, ainda sustentada em precário desequilíbrio por uma única dobradiça. Somente um dos cômodos permanecia ainda par-cialmente coberto por um telhado prestes a desabar. Era o meu quarto. Sentei-me no chão e chorei profusamente em convul-sões de soluços.

         Incontidamente gritei aos céus: POR QUÊ, MEU DEUS?!

        Aflorou-me à mente um nicho camuflado em que guardava minhas relíquias infantis e lá estava, desbotado mas incólume, o meu pião junto à fieira apodrecida. Não fora descoberto pela súcia invasora e guardei-o com carinho no bolso de minha calça.

        A tarde chegava ao seu final e o escurecer ameaçava fazer-se. Confirmei o bom funcionamento de minha lanterna e preparei-me para a longa caminhada, de volta até onde deixei estacionado o carro. Ao sair do casarão, dei uma derradeira olhada para ele, num emocionado adeus. Por lá ficariam enterrados meus sonhos e pesa-delos, mas jamais esquecidos.

        Já ao volante, desfilaram-me em pensamento os aconteci-mentos daquele aziago dia. Tínhamos acabado de tomar o café da manhã daquele domingo e papai já tinha feito sua costumeira ora-ção de agradecimento por mais aquele dia que iria começar. Con-tou-nos, com alegria, que na véspera, quando esteve na cida-de, comentava-se que a guerra tinha acabado e que o inimigo tinha deposto as armas. Todos nos abraçamos comemorando o grande acontecimento.

        Naquele exato momento, surgiram uns homens fardados nos ordenando que fôssemos para fora da casa. Como nenhum de nós se mexeu, mais pela surpresa causada pelo inusitado do que por re-sistência, um deles agarrou minha mãe pelos cabelos e arrastou-a. Meu pai não se conteve e atracou-se com o brutamontes. De ime-diato recebeu um mortal tiro  na cabeça, desfechado por um outro comparsa.

        Chorando, sem qualquer alternativa, agarrados à nossa mãe, submissos e dominados pelo  pânico, subimos em um caminhão, on-de já haviam outras pessoas reféns dos algozes. Ficamos assistindo estarrecidos a pilhagem à casa e atos de vandalismo culminando com um incêndio ateado no casarão. O soldado que tomava conta do nosso grupo, distraiu-se assistindo pervertidamente a dantesca cena e minha mãe fez-me pular da carroceria do caminhão sussur-rando que corresse em direção à floresta próxima, pertencente à nossa fazenda. Papai sempre dizia que o tamanho da área de nossa propriedade media-se, andando a cavalo dois dias para cada dire-ção dos quadrantes da rosados-ventos.

        Passando-me desapercebido, embrenhei-me na floresta que me era bastatente familiar, pois lá brincávamos muito, meus ir-mãos e eu. Fui diretamente esconder-me na Gruta dos Morcegos”, assim por nós batizada, por razões óbvias.

        Durante o dia, só tinha que tomar cuidado em não espantar os morcegos e nem ficar embaixo de onde ficavam pendurados, por causa das fezes que expeliam amiúde. Quando escureceu, eles par-tiram em revoada sinistra. Pra minha sorte, não pertenciam ao tipo hematófago. Resolvi permanecer na gruta até o raiar do dia e en-tão seguir em direção à cidade.

        Com o início do retorno dos morcegos ao “lar”, iniciei minha jornada em direção à civilização. Mitigando minha sede e comendo frutas pelo caminho, cheguei lá ao anoitecer do terceiro dia, bas-tante trôpego e chorando muito. Estavam todos alegres, cantando e se abraçando. Ainda festejavam o fim da guerra e não notaram minha presença, mais parecendo eu um duende em estado catatô-nico. Aproximei-me de um policial alheio às festividades e, balbu-ciando palavras sem nexo, tentei contar-lhe o ocorrido com minha família mas desmaiei aos seus pés.

        Recobrei meus sentidos deitado em um leito hospitalar, as-sistido por um médico que aplicou-me injeções e um soro. Assim que possível, contei-lhe meu drama. Diligências foram tomadas mas nada de concreto foi apurado, ou não quiseram apurar. Uma família estrangeira condoída comigo, resolveu adotar-me e levou-me para seu país. Tratado como filho único, cresci com todos os cuidados e mordomias, cursando a faculdade e formando-me em advogado.

        Durante todo esse tempo alimentava esperanças de visitar minha pátria, rever minha casa e reencontrar, pelo menos, um de meus irmãos, sobrevivente de um possível e inexplicável morticí-nio.

        O dia chegara mas, duas décadas depois, apesar de minhas inúmeras indagações, ninguém soubera dizer-me algo para ajudar-me. Desanimado, voltava ao hotel e, no saguão, esperava-me, um homem aparentando ser bem mais velho que eu. Quando caminhou em minha direção, pareceu-me haver algo familiar em seu olhar. Estava andrajoso e nada dizendo-me,  abraçou-me chorando, mas sem pronunciar uma única palavra.

        Em meu peito algo explodiu dizendo-me ser o meu irmão ime-diatamente mais velho em apenas dois anos, mas ele aparentava uns seis ou sete a mais. Desfiz o abraço querendo fitá-lo mais deta-lhadamente e lá estava a pequena cicatriz sob seu olho esquer-do, proveniente de uma briga que tivemos por causa do pião que trazia no meu bolso. Tornei a apertá-lo contra meu peito e solu-çando sussurrei seu nome ao ouvido. Ele sorrindo entre lágrimas, acenou-me afirmativamente com a cabeça. Não falava, em estado de choque, perdera o dom da fala, consequente do trauma sofri-do. Graças a sua mudez, foi poupado pelos assassinos e deixado livre em local distante, entregue nas mãos de um destino nada promissor. A muito custo, anos depois, conseguiu retornar à sua cidade de origem e passou a viver ajudado por comiseração, co-mo um mendigo desconhecido e anônimo, talvez sobrevivente da guerra, que surgira do nada quatro anos atrás. Mamãe e meus outros três irmãos estava sob os cuidados de nosso Deus Criador, depois por ele revelado em gestos aflitos.

        Decidi levar meu irmão comigo. Depois de um banho tomado no próprio hotel, cabelos cortados, barba raspada, bem alimentado e roupas novas, ressurgiu meu querido irmão. Já no avião, de volta para a minha casa, entreguei-lhe uma caixinha embrulhada para  presente. Ao desembrulhá-la, com a cabeça abaixada, olhava em-bevecido para o pião, pelo qual brigáramos quando crian-ças. Lágrimas de emoção, por ambos vertidas, acabavam de soli-dificar nossa fraterna união até o final de nossas vidas. Aí, este outro choque, devolveu-lhe a fala e balbuciante, numa voz rouque-nha, falou-me: “como você demorou a chegar... meu irmão”.

        Reclinei o encosto de sua poltrona, coloquei-lhe o cinto de segurança e, sem largar o pião, mergulhou num sono profundo, co-mo se acordado estivesse há vinte anos. A custo consegui despertá-lo para a refeição oferecida pela aeromoça. Tinha certeza que mi-nha esposa iria adorar o seu cunhado e meu filho aproveitaria bas-tante os mimos daquele tio que eu levava para eles.

        Ainda que parcialmente, senti minha busca terminada e agra-deci a Deus a dádiva Dele recebida, certamente proporcional ao meu grau de merecimento. Nem mais, nem menos...

Ary Franco
(O Poeta Descalço)



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