O Factórum do Rei - Parte 1


(PRIMEIRA PARTE)

       Nasci em um dos aposentos da criadagem, no palácio do Reino da Utopicolândia, filho de súditos de sua majestade, o Rei Quimé-rico II o Generoso. A partir de minha adolescência fui lacaio e gal-gando postos por relevantes serviços prestados à corte, cheguei a ser o homem de confiança do Rei. Uma espécie de serviçal, secre-tário, ajudante de ordens, conselheiro, etc. Outrora, inda como pajem preferido do rei, acompanhando-o em uma caçada na flores-ta real, salvei sua vida interpondo-me à investida de um feroz javali sobre ele, quando o atacava por trás. Após abatê-lo a tiros, o rei estendeu-me sua mão ajudando-me a levantar. Fiquei bastante ferido e o rei imensamente grato ao meu feito leal e corajoso.

       Das tarefas que me eram incumbidas, a que mais gostava era ter que provar antecipadamente toda comida e bebida que eram servidas ao rei. Não queria ele correr o risco de vir a ser envenena-do. Faisão assado ao molho tinto era seu prato preferido. As sobre-mesas eram guloseimas das mais variadas e apetitosas possíveis. Era muito benevolente e adorado pelo povo, mas detestado pela maioria soberba dos séquitos de sua corte.

       Por ser um contumaz glutão, acho que seu peso orbitava os cento e cinquenta quilos, respeitosamente, sempre lhe recomenda-va que fizesse um regime alimentar para redução de sua obesidade mórbida, mas nunca me deu ouvidos. Minha proximidade com o rei era invejada por muitos nobres e sofria acintosa hostilidade por isso, mas nunca me queixei ao monarca.

       Sua majestade sempre comia com sofreguidão, quase sem mastigar. Por causa disso, certo dia, ficou engasgado com um osso de faisão atravessado em sua garganta. O sufoco deixou-o com a pele arroxeada e os olhos esbugalhados. Nenhum dos comensais di-gnou-se a colocar as mãos nele para tentar salvá-lo; achavam que estava em meio aos estertores de um criminoso e proposital enve-nenamento, sendo eu o obvio responsável. Providencialmente esta-va eu em pé atrás de sua cadeira à cabeceira da mesa e derruban-do-o ao chão, introduzi a ponta do cabo (retorcido como um anzol) da concha de servir sopa em sua garganta e alcancei o osso puxan-do-o e salvando sua vida pela segunda vez. Num esforço sobre-hu-mano consegui ajudar a recompô-lo de volta à sua cadeira.

       Com a garganta ferida e ainda resfolegante, sem nada poder falar que fosse audível, não obstante o pesado silêncio reinante, com gestos que não deixaram dúvidas, ordenou que todos se reti-rassem. Quando dei o primeiro passo para acompanhar os demais ele segurou-me pelo braço e fez sinal para sentar-me ao seu lado à mesa! Fiquei surpreso, atônito e sem entender o que estava se pas-sando; eu, um mero eu, sentado onde lordes se sentam E AO LADO DO REI!!! Não sabia, mas naquele momento um novo mundo se abria para mim.

       Balbuciante, ele inclinou-se e apoiando sua mão em meu om-bro disse-me, entre pigarros e com voz rouquenha:

       __ Por duas vezes salvaste minha vida. Deste prova de tua le-aldade e fidelidade a mim. Fizeste mais do que o bastante para merecer uma recompensa e assim será feito. Ide e aguarde!

       __ Majestade, agradeço vossas benevolentes palavras, mas gostaria de acompanhar-vos até vossos aposentos.

       __ Não há necessidade. Sinto-me bem. Caso encontres o Du-que Fausto aí fora, diga que quero falar-lhe com urgência e traga-me também o médico. Estarei aqui esperando.

       __ Assim será feito Majestade.

       Levantei-me da cadeira, recuei uns três passos, fiz uma reve-rência e atravessando o amplo salão, saí eufórico porta afora.

FIM DA PRIMEIRA PARTE

Ary Franco
(O Poeta Descalço)

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Fundo Musical: Aria - Orquestra Fausto Papetti
 

 
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