1º capítulo
Os
preparativos
Final da tarde de uma quarta-feira indo ao restaurante 5 estrelas chamado
ÉDEN, durante alguns anos por mim frequenta-do, antes de aposentar-me. Poderia ter telefonado mas preferi re-ver os antigos amigos. Cheguei lá,por volta das
18:10h, deixando meu carro no estacionamento, ainda vazio, privativo aos fregueses. A noite já se fazia sentir, insinuando o seu escurecer.
O movimento do jantar ainda não havia começado e encontro o velho
Argemiro, dono do estabelecimento, lavando alguns copos, deixando-os emborcados em uma toalha sobre o balcão. Já poderia ele ter se aposentado há
muito tempo, mas sempre me dizia que o “olho do dono engorda o gado”. Ao
me ver, mostrou-se espantado como se estivesse diante dele um ressuscitado,
saído do túmulo.
_ Mas não é possível, Ary! Quem é vivo, sempre aparece! Onde estivestes esse tempo todo? Estavas preso ou doente? E riu ruidosamente!
Tirou o avental, deu-me um forte abraço e antes que eu pu-desse dizer algo, segurou-me pelo cotovelo e conduziu-me à co-zinha mostrando-me à sua
esposa.
_ Charo! Olha quem está aqui!
_ Seu Ary... o que aconteceu? Perguntou, saudando-me com troca de beijinhos laterais.
_ Aposentei-me e agora dificilmente saio de casa sozinho. Fico sob forte vigilância, marcação implacável. Estou aproveitando que a patroa está em
Porto Alegre visitando nossa filha e estou “tirando o pijama” um pouquinho... E nós três rimos muito.
Pedi licença à
Da. Charo
deixando-a de volta ao comando da cozinha e voltei com o amigo Argemiro para o balcão. Outrora, por
insistência dele, levei algum tempo para aprender a pronunci-ar seu nome corretamente: Era
“Ar remiro”
e não “Arremiro”, cor-rigia-me ele.
Comecei a ajudá-lo no lavar dos copos e talheres e ele confi-denciou-me que muita coisa mudou durante minha ausência. O res-taurante fora assaltado duas vezes e ele foi obrigado a contratar seguranças particulares. Dois ficavam
na entrada e disfarçados co-mo fregueses dentro do estabelecimento.
Disse-me que estava can-sado pela idade avançada e que já tinha amealhado um dinhei-rinho para voltar à sua pátria e passar o final de seus dias
descan-sando, até a hora de sua derradeira partida. No máximo, trabalha-ria
mais um ano somente. Tudo dependia do trâmite das negocia-ções que estavam
sendo mantidas com um grupo interessado na compra do
ÉDEN.
Lamentei as más notícias e disse-lhe a razão de minha vinda.
_ Amigo, preciso reservar uma mesa para este sábado, um jantar a dois.
_ A 11 ou a 5? Perguntou-me ele, com olhar maroto.
Sabia ele que eu dava preferência à 11 para jantares comerci-ais com
meus clientes, a qual ficava mais próxima do tablado de danças, porém, mais
tumultuada.
_ A 5! Respondi-lhe com um incontido sorriso. É uma pessoa muito especial e distinta, uma dama que representa muito para mim. Nada além de
uma linda amizade...
_ Que bom saber que ainda estás na ativa...
_ Não tão ativo como dantes, se é que me entendes... mas não é o que
pensas, apenas vou conhecer uma pessoa muito respei-tada e admirada por
mim mas que que nunca a vi pessoalmente. Conversamos muito pela Internet
e quero causar-lhe uma boa im-pressão.
_ Internet?! Exclamou, admirado...
_ Esquece, amigo! No momento preciso também conversar com “Dom
Genaro” e Paco. Eles continuam se apresentando aqui, não? Estou surpreso,
vendo um piano ali no canto... não é do meu tempo!
Mal acabara de falar, os dois, coincidentemente, adentraram o salão,
sobraçando seus violinos. Entre sorrisos, nos abraçamos. Esses dois
grandes amigos, sempre me lembravam carinhosamente a dupla “Zé Colméia
e Catatau”.
Dom Genaro era grandalhão e corpulento e Paco era baixo e gordinho,
pouco falava.
Quando acontecia de estar sozinho, nos intervalos de suas apresentações, ambos vinham sentar-se à minha mesa para descan-sar um pouco e acompanhar-me numa bebida.
Deixei o Sr. Argemiro às voltas com o enxugar das louças e fo-mos os três sentar na varanda, longe da azáfama dos garçons pre-parando suas respectivas mesas para o jantar daquela noi-te. Maioria deles eu não conhecia; eram novatos na casa.
Nesse ínterim, cruzamos com o recepcionista (porteiro)
que acabava de chegar, já devidamente paramentado com a indumen-tária de seu vistoso uniforme azul-marinho, com bordados verme-lhos nos punhos e quepe. Ele chamava-se Vicente e conservava uma vistosa barba branca que o ajudava a fazer trabalhos de Papai Noel (biscates) em dias próximos à data natalina nos dezembros. Era encarregado de abrir as portas dos carros ao chegar dos fre-quentadores comensais. Os guardadores (manobreiros), não tão bem uniformizados, os conduziam para o estacionamento. Vicente me reconheceu e cumprimentou-me, sempre circunspeto, como era seu modo de ser. Respondi com um aceno de cabeça.
“Dom Genaro” confidenciou-me que fora vítima de um leve derrame e que, não obstante ter sido socorrido de imediato, não mais cantava. Agora somente solava com o Paco músicas de seus repertórios, basicamente valsas,tangos e boleros e também acom-panhavam o Manolo, pianista recém-contratado. Realmente tinha notado sua voz meio “rouquenha” e seu lábio inferior um pouco caído no lado esquerdo, como soer aos inveterados fumantes de cachimbo. Quando ele cantava Granada com o acompanhamento musical do Paco, afastava-se um pouco das mesas, tamanho era seu potencial de voz (sem
uso do microfone). Todos se calavam para escutá-lo e aplaudi-lo entusiasticamente, inclusive eu, seu fã nº 1. Tempos bons aqueles...
Agora sua voz calou-se ao canto mas, graças a Deus, perdurou seu segundo talento. Lamentei o ocorrido mas fiquei feliz ao saber que, afora o nefasto derrame, ambos continuavam virtuoses violi-nistas. Contei-lhes sobre o sábado e pedi-lhes que, logo após servi-da a sobremesa, eles se aproximassem da minha mesa e solas-sem “Não se Esqueça de Mim”. Costumeiramente, eles circulavam por todas as mesas para deleite dos frequentadores.
Tudo ficou combinado e soube pelo Sr. Argemiro que o Lino, meu garçom preferido e velho amigo, é quem atenderia minha me-sa. Pena que ainda não tivesse ele chegado, para nos revermos. Conheci-o em outro restaurante no centro da cidade, próximo ao meu trabalho, onde eu almoçava das 2ªs às 6ªs feiras. Quando surgiu uma vaga no
ÉDEN, levei-o para lá, onde permaneceu
satis-feito, em ambiente mais distinto e “gratificante”.
Despedi-me de todos e dei uma olhada saudosa para o tabla-do ainda
vazio, cercado de mesas, onde eu tantas noites dancei com
meus “eternos
amores”.
Fim do 1º capítulo
2º capítulo (penúltimo)
O encontro
Na saída Vicente já estava a postos. Gentil e cerimonioso abriu-me a porta, desejando-me boa noite. Retribuí e agradeci. O seu modo de ser era assim e jamais iria mudar.
No estacionamento peguei meu carro, deixando uma gorjeta com o vigia que já havia chegado. Não o reconheci mas ele lem-brou-se de mim.
_ Tudo bem, seu Ary?
_ Tudo OK, não vai me dizer que você é o Betinho!
_ Sou eu mesmo. Casei-me, engordei bastante e a minha mu-lher quando engravidou implicou com meu bigode e tive que raspá-lo. Por isso, o sr. não me reconheceu.
_ Mas se o neném já nasceu, deixe o bigode crescer de novo.
_ Não adianta! Ela tá grávida outra vez!
_ Hi!... então é melhor ficar como está! Caímos na gargalha-da!
_ Quando vi seu Gol aqui estacionado, desconfiei que era do sr...
_ Realmente, este calhambeque é meu meio de transporte há 21 anos e nunca me deixou a pé. Não posso e tenho medo de tro-car por algum mais novo. É uma espécie de fidelidade recíproca... não aceito a ideia de vê-lo nas mãos de outro e sendo mal tratado, entendeu?
Ainda rindo, nos abraçamos e avisei-lhe que sábado estaria de volta.
Tempos atrás ajudei o Betinho a livrar-se de um problema e ele ficou-me eternamente grato.
No caminho, fui relembrando meus anos de frequência no
ÉDEN. Era
gerente da sucursal de uma empresa seguradora. Sempre ultrapassava
as metas estipuladas pela Matriz e tinha certas regali-as com o reembolso
de “despesas sociais de representação” e de “despesas pessoais”. Graças a isso pude frequentar por cinco anos aquele restaurante de alto gabarito.
Chegando em casa tomei um banho, “assaltei”
a geladeira e fui dormir.
O restante da semana transcorreu rotineiramente, na compa-nhia do meu computador.
Na manhã de sábado, via Internet, ficou tudo acertado com minha amiga para nos encontrarmos no
ÉDEN às 20:00h. Ela não aceitou meu convite para ir buscá-la de carro.
Lá pelas l8:30h tomei um banho, fiz a barba, vesti meu blazer e parti para o encontro, com bastante antecedência. Cheguei ao restaurante às 19:20h.
Deixei o carro no estacionamento aos cuidados do Betinho e fui a pé para o restaurante. Vicente estava ocupado em abrir as portas dos carros que chegavam e não me viu entrar. Passei pelos dois seguranças trajando ternos pretos, sem qualquer proble-ma (essa era uma das vantagens dos meus cabelos grisalhos). O movimento já se fazia sentir, prenúncio de que haveria “casa lota-da”
(todas as
mesas previamente reservadas).
Conferi, e lá estava a minha mesa nº 5, com o aviso “reserva-da”. Cumprimentei a todos os conhecidos, inclusive o meu amigo e garçom Lino. Conversamos amenidades e ele contou-me, com certo orgulho, que já era vovô e dei-lhe parabéns. Também fui falar com Da. Geraldina, “prata da casa”, encarregada da chapela-ria, onde ficavam aos seus cuidados casacos, bolsas,
etc... menos chapéus que caíram em desuso, mas o nome de chapelaria
per-maneceu... pura tradição! No distante passado ela trabalhou nas chapelarias de vários teatros, quando os chapéus faziam parte da indumentária do homem elegante. Até as bengalas eram usadas com um certo charme.
Procurei o meu amigo “Ar remiro” e convenci-o de ficar com um cheque meu assinado em branco, pois não queria saber de “contas a pagar”, após o jantar. Depois falaríamos a respeito. A muito custo ele acabou ficando com o cheque.
“Dom Genaro” procurou-me para dizer que Manolo iria solar ao piano a música “Não se Esqueça de Mim” e que ele e o Paco fariam o acompanhamento musical, junto à minha mesa. Disse-lhe que estava OK, mas que fosse na hora da sobremesa.
Faltando uns dez minutos para as 20:00h fui para a por-ta, aguardar a chegada da minha convidada. Vicente olhou-me es-pantado, procurando entender como eu havia entrado, sem que ele me visse. Postei-me afastado da porta mas vigilante, próximo aos seguranças.
20:20h comecei a ficar intranquilo e às 20:30h resolvi en-trar, tomado por uma série de sentimentos contraditórios. Sentei-me à mesa em posição estratégica, virado para a porta. Embora distante, dava pra ver, caso ela chegasse.
O “maitre” (meu desconhecido)
veio indagar se poderia ser-me útil, mas agradeci e dispensei-o
dizendo que estava à espera de uma pessoa e que ele não precisava se
preocupar pois me entenderia com o garçon. Logo em seguida veio o
Lino para atender-me mas eu preferi continuar esperando. Sentia
preocupa-ção, angústia, decepção... tudo isso causava-me um choque
emo-cional, como o de ter bruscamente passado do céu para o inferno!
Olhei o relógio... 20:45h. Olhei para a porta... lá estava ela! Chegara! Sem dúvida era ela, com um vistoso casaco sobre os om-bros. Ficou parada, imponente, linda, a espera de ser reconhecida e, antes de dar o primeiro passo, fui ao seu encontro. Sorrimos um para o outro. Trocamos beijinhos laterais enquanto sussurrávamos baixinho nossos nomes. Conduzi-a para a nossa mesa, retirei o casa-co de seus ombros e ajeitei a cadeira para ela sentar-se.
Eu estava meio sem fala e pigarreei antes de chamar o Lino e
entregar-lhe o casaco para ficar sob a guarda da chapelaria.
Finalmente consegui perguntar se houve algum problema em sua vinda
e ela contou-me em detalhes o acontecido. Visitas ines-peradas que
se demoraram mais do que o ideal. Sua voz era mavi-osa, nunca dantes
a tinha escutado. Conversamos muito, nos co-nhecemos bastante, sempre através do teclado do computa-dor. Agora, era uma sensação maravilhosa: perguntas e respostas de imediato!
Lino voltou com a ficha numerada correspondente à entrega do casaco na chapelaria e perguntou-me se poderia trazer o cardá-pio. A especialidade da casa era frutos do mar e, de comum acor-do, pedimos uma bacalhoada à espanhola pra dois, já que ela jurou que comia e bebia pouco. Assim mesmo pedi um vinho branco ma-duro para nós.
A música invadia o ambiente tornando-o agradável. Os violi-nistas já
passavam de mesa em mesa em consonância com o Mano-lo ao piano no
tablado.
Lino fez o ritual clássico da prova do vinho. Repousou o garga-lo da garrafa sobre seu antebraço
esquerdo forrado com um guar-danapo imaculadamente branco e serviu
pequena porção em nossas taças. Degustamos e aprovamos. Lino tinha uma fidalguia nata. Era alto, magro e elegante. Se a sorte lhe sorrisse, seria um mordomo de primeira linha. Minutos depois, estávamos sendo servidos.
Em meio ao jantar minha querida amiga avisou-me que sua hora máxima de ficar era até as 23:00h, nem um minuto à mais. Só restava-me acatar a sua resolução e jantamos, alternando as garfa-das com assuntos amenos e dos variados e agradáveis.
Pedimos tortas de maçã como sobremesa. Adorava essa torta alemã chamada complicadamente de “Apfelstrudel”. “Dom Gena-ro” e Paco estavam atentos e já se dirigiam à nossa mesa, mas
Da. Charo chegou primeiro oferecendo
uma rosa à minha agradável companhia. Era um ritual que ela fazia habitualmente percorrendo as mesas e oferecendo rosas a cada uma das esposas, noivas, ami-gas ou namoradas presentes. Vestida a caráter e trazendo as flores num cestinho de vime, lembrava-me a figura de “La Violetera”.
Logo após a oferenda da rosa aproximaram-se os violinistas “para surpresa minha”, acompanhando a execução de Manolo ao
piano de
Não se Esqueça de Mim...
Levei duas semanas decorando a letra até atingir o ponto de não gaguejar e no tom certo.
Comecei a declamar em voz baixa a letra no ritmo da música e notei um rubor em suas faces, pois as pessoas das mesas mais próximas começaram a prestar atenção em nós dois, principal-mente uma moça aparentando seus 23 anos, acompanhada dos pais.
Terminada minha “apoteótica apresentação”, a moça come-çou batendo umas palminhas discretas e outros mais próximos, fizeram o mesmo. Sorri, agradecendo.
_ Ary, você não precisava fazer isso. Eu estou muito agradeci-da e
lisonjeada com seu cavalheirismo. Foi uma noite maravilho-sa! Te agradeço de coração!
_ Foi? Ainda falta muito para as 23:00h e você não irá embora sem dançar comigo!
_ Mas eu só gosto de dançar valsa, estão tocando boleros e tangos...
_ Não tem problema! Me dê licença só por um minuto...
Fui falar com “Dom Genaro”
e ele foi falar com Manolo... Pronto! Começaram as valsas e voltei para a mesa.
_ Vamos?
_ Mas não tem ninguém dançando...
_ Ótimo! Vamos “abrir
o salão”...
_ Postei-me atrás da cadeira dela, pronto para ajudá-la a le-vantar-se.
Imediatamente após começarmos a dançar, outros pares ro-deavam entre nós.
Pela vez primeira, senti seu calor... seu olor! Não posso afir-mar que estava perdidamente apaixonado mas estava magnetizado por ela. Que bom seria pudesse eternizar aquele momento...
Valsas depois, “Eu Sonhei que tu Estavas tão Linda”, “Valsa
da Despedida”, etc... voltamos à mesa e pedi dois licores Dram-buie. Fizemos tim-tim, brindando à uma amizade eterna e verda-deira. Ela pediu-me licença para ir ao toalete dar uma retocada na maquiagem e eu pedi ao Lino para pegar o casaco na chapelaria.
Quando ela retornou, coloquei-lhe o casaco sobre os ombros, pensando em acompanhá-la até o estacionamento. Foi aí que fi-quei sabendo que ela tinha vindo de táxi. Preferiu deixar o carro na garagem. Dispus-me, então, a levá-la em casa no meu carro mas ela declinou do convite, de nada adiantando minha insistência. Pegou a rosa e caminhamos para a saída.
Vicente abriu a porta para nós, meio indeciso sobre o que fa-zer. Se chamava um táxi ou se eu iria levar a dama em casa.
_ Querida, então aguarde um minutinho só! Eu estou vendo um taxista de minha confiança para levá-la em casa. Nisso já está-vamos na calçada.
_ Não precisa Ary, eu vou neste que é o primeiro da fila. E ou-tra coisa: você saiu sem pagar a conta. Vamos dividir as despesas?
_ De jeito algum. E eu nem vou pagar... Depois que você em-barcar no táxi eu vou correr para o estacionamento e fugir no meu carro!
Ela ficou meio assustada, levando a sério e eu caí na garga-lhada!
_ É brincadeirinha. Pode ficar tranquila que eu vou lavar a louça e não pagarei nada. Já está tudo combinado com o dono do restaurante. Aí quem riu foi ela!
Pedi licença e fui falar com o Henrique, um taxista de confi-ança, meu amigo de longa data. Cumprimentei-o, ele se lembrou de mim e dei-lhe uma quantia pedindo-lhe para levar uma passa-geira à casa dela, já com a corrida paga. Que nada recebesse da moça! Se faltasse eu completaria e se sobrasse
ele me devolveria. Voltei para o lado da minha amiga e o Henrique
parou o táxi na nossa frente.
Antes que o Vicente “se metesse”, abri a porta do carro, si-mulei um
beijo na mão dela e balbuciei: “Deus
te acompanhe e muito obrigado por teres vindo!”
Fiquei olhando o táxi até desaparecer. Uma aragem trazia um frio desagradável e voltei para o interior do restaurante, sentindo meus olhos marejarem... mas FELIZ, achando que a razão e o juízo falaram mais alto.
Fim do 2º Capítulo (penúltimo)
3º e último capítulo
De Volta ao
Éden
Antes de sentar-me à mesa em “companhia da ausên-cia” de minha querida amiga, dirigi-me ao WC para aliviar um pou-co a bexiga. Lavei as mãos e o rosto, dei uma ajeitada nos cabelos mas os olhos permaneceram vermelhos umectados que foram por lágrimas salgadas enviadas pelo meu coração, agora abalado pe-la solidão. O relógio dizia-me que faltavam dois minutos para as 23:00h. Ela foi embora, séculos mais cedo do horário previsto.
O banheiro dos cavalheiros era relativamente contíguo ao das damas. Na saída, coincidentemente (?!) deparei-me com a moça que aplaudira minha declamação, ainda que feita na surdina.
_ Olá! Sua namorada já foi?
_ Sim! Mas não era minha namorada, apenas uma amiga muito querida.
_ Parece que agora, somos os únicos sozinhos, já que cada um tem seu par. Adoro dançar mas ainda não fui convidada. Gostei de ver você dançando valsa com sua amiga. Que tal me convidar pra dançar? Assim, não nos sentiría-mos tão sós...
_ A ideia me parece perfeita! Seus pais não vão causar pro-blema?
_ Não! Vou sentar no meu lugar lá na mesa e você me convi-da, ta?!
_ Combinado, mas primeiro vou diminuir um pouquinho o conteúdo da garrafa de vinho que está me esperando na minha me-sa – OK?
_ OK! Então... até já!
Tomei duas taças do vinho e ainda ficou um pouquinho. A moça não tirava os olhos de mim, ansiosa, cobrando-me o combi-nado. Estavam tocando o bolero “La Barca” e fui até ela cumprir as formalidades protocolares à moda
antiga; hoje parece que o homem convida a mulher, dizendo: “Vamos
nessa?”
_ Boa noite! Conceder-me-ia o prazer desta dança?
_ Sim! O prazer é todo meu!
Pedi licença aos pais da moça e fomos para o tablado. Iniciei os passos
com cautela, no “um
pra lá e dois pra cá”,
mas ela come-çou a querer
ME CONDUZIR(!). Sentindo-me diminuído, elevei a va-riedade de passos e ela mostrou-se receptiva, leve como uma plu-ma. Ela dançava... e bem! Lembrei-me
de Dolores, meu par cons-tante de “priscas
eras”.
A moça chamava-se Lourdes, tinha 23 anos, cursando o último ano de advocacia, brigada com o namorado, adorava festas e bailes e ele não. Disse-lhe meu nome, aposentado, tendo como hobby ser poeta e que tinha uma neta com mais idade que ela.
Já era quase uma hora e os pais da moça faziam sinais de querer ir
embora. Já tinham até pago a conta. Encerramos dançan-do o tango “La Cumparsita”. Acompanhei-a até a mesa dela e agra-deci. Pareceu-me feliz e satisfeita...
Mais tarde Dom Genaro e Paco vieram fazer-me compa-nhia, trazendo um champanhe resfriado num baldinho com ge-lo, como oferta da casa. Lá do balcão, meu amigo Argemiro fez sinal para mim com o polegar pra cima. Logo em seguida veio o Lino fazer o ritual da abertura do champanhe. Rodopiou a garrafa no balde e com um alicatezinho cortou os arames que prendiam a rolha, abafando com o guardanapo o espocar da abertura da garrafa, sem deixar
cair uma gota sequer. Era um “gênio”!
Brin-damos a uma vida longa e saudável.
Próximo às duas horas, as mesas se esvaziaram rapidamen-te, apenas os dois seguranças internos, disfarçados de frequenta-dores, jantavam em uma mesa próxima à porta de entrada. O por-teiro Vicente já tinha ido embora, juntamente com o Manolo pia-nista. Meu amigo Argemiro veio sentar-se conosco dizendo que o dinheiro da féria do dia já estava a salvo. Ele contou-me que, de-pois do segundo assalto, mandara instalar uma “boca de lobo” que era um pequeno túnel tubular em que era jogado o dinheiro e che-ques presos com elásticos que escorregavam diretamente até um cofre de segurança, com dispositivo de tempo para poder ser aber-to. Às 10:00h vinha sempre um carro-forte buscar a grana já conta-da e era levada num malote, lacrado pelo seu gerente
que chegava às 7:00h e administrava o restaurante, até seu retorno
próximo à hora do almoço.
Lino, já sem a gravatinha borboleta, se despediu de mim e entregou-me discretamente um pedaço de papel dobrado e confia-do a ele pela Lourdes, antes de ir embora. Estava escrito: “Quando quiseres dançar: e o número de
um telefone”. Sorri e pensei: “Tempo, tempo, por que passastes tão rápido
levando-me tão à frente que ficaram-me para trás, coisas tão boas que não
mais posso apreciar?”. Solenemente queimei o bilhetinho sob olhares curiosos.
A mistura do vinho com o champanhe deixou a ponta do meu nariz dormente. Era o meu censor de alerta vermelho. Hora de pa-rar!
Tirei o paletó, afrouxei o nó da gravata, olhei para o piano e perguntei ao velho Argemiro se poderia “arranhar” um pouco o te-clado. Ele, de imediato, respondeu-me: “A
casa continua sendo sua”.
Sentei-me no tamborete e iniciei brincando com “Cai cai ba-lão”. Todos riram e os dois seguranças que acabavam de jantar gritaram em tom jocoso: “Pode dispensar o Manolo!”.
Aí procurei recordar as notas musicais corretas de “As Rosas Não Falam” do Mestre Cartola e sai-me bem. Quando ia iniciar “Acércate Más”, apareceu o Henrique, motorista do táxi que conduziu minha amiga à casa dela. Pedi que ele esperasse um minutinho e fui des-pedir-me dos amigos.
Brinquei com o velho Argemiro dizendo que iria deixar meu “Rolls-Royce” no estacionamento como garantia do pagamento das despesas e que iria
pra casa de taxi. Não estava muito seguro em dirigir.
Abracei a todos e lá fui eu com o Henrique.
_ Amigo, leve-me pra casa e lá pelas 11:00h me traga de volta aqui no Éden – OK?
_ Certo! Fiz várias corridas antes de encerrar a noitada e re-solvi dar uma passada aqui no Éden para dizer-te que a moça não aceitou a “corrida paga” e fez questão de pagar. Não adiantou minha recusa em receber. Daí, estou te devolvendo o dinheiro e uma rosa que ela esqueceu no banco traseiro.
Pensei comigo: “Orgulhosa! Até que enfim achei-te um defei-to!” Mas a
rosa desprezada, eu não perdoo.
Cheguei em casa próximo das 3:00h e o Henrique veio bus-car-me na hora combinada, de volta ao
ÉDEN. Em lá chegando, acertei as contas com o Henrique e dispensei-o, agradecendo sua honestidade e nobreza de caráter.
Antes de ir ao estacionamento fui falar com o Geren-te, identificando-me e indagando quanto foi o valor do meu che-que. Ele chamava-se Antonio e
entregou-me um envelope deixado pelo “Seu
Argemiro”
para mim.
Fui para o carro, dei uma gorjeta pro vigia (Betinho só chega-ria mais tarde) e abri o envelope. Lá estava o meu cheque rasgado ao meio e um bilhete do meu amigo: “Ary, não quis dizer-te pes-soalmente mas o Éden está vendido. Tenho trinta dias para entre-gá-lo aos novos
proprietários. Eles aceitaram ficar com a responsa-bilidade dos encargos trabalhistas, única coisa que
“estava pegan-do”. Se algum dia aqui retornares, este teu amigo estará bem
dis-tante na Espanha, mais precisamente em Zamora, minha província natal. Fica com Deus e aceite a devolução deste cheque como cor-tesia da casa”.
Fiquei emocionado com o carinho do meu amigo e, contras-tando com o ambiente até então desfrutado, almocei num “bote-co” da esquina e fui pra casa colocar meu sono em dia.
À noitinha, acessei o computador e lá estava um e-mail da minha amiga agradecendo as horas agradáveis que passamos jun-tos e desculpando-se pela rosa esquecida no táxi. Ela teve que pousá-la no banco para abrir a bolsa na hora de pagar o tá-xi. Por causa da “querelle” com o motorista, quanto ao pagamento da corrida, acabou esquecendo-se da flor.
Escrevi para ela que estava tudo bem e que a rosa repousava na mesinha
de cabeceira do meu quarto, com seu talo imerso em um copo com água,
lembrança dos momentos por nós ambos vivi-dos no
ÉDEN.
FIM
Nota do autor: Este conto é pura ficção e qualquer semelhança com os nomes de
pessoas vivas ou mortas, será mera coincidência.
Ary Franco
(O Poeta Descalço)
Fundo Musical: Não se Esqueça de Mim - Eduardo Lajes
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