Lutero, o monge católico que abriu portas
 
para surgimento de igrejas evangélicas
 
 
Fonte: MSN - 02/02/2023
 


Para muitos, ele é só um nome relevante naquelas aulas de his-tória da escola, sobretudo quando são estudados os movimentos socioculturais da Europa no século 16.

Para aqueles que professam a fé cristã fora da Igreja Católica, contudo, mesmo que não saibam, ele tem uma importância fun-damental.

Monumento a Martinho Lutero na cidade de Eisleben,
na Alemanha -
© Getty Images

Estamos falando de Martinho Lutero (1483-1546), monge agosti-niano germânico que acabou, meio que sem querer, promoven-do o que ficou conhecido como Reforma Protestante, um movi-mento que abriu as portas da religião, quebrando o monopólio da Igreja Católica e permitindo que passassem a existir, no mundo ocidental, diversas outras igrejas cristãs.

Meio que sem querer porque ele próprio nunca pareceu querer romper com a Igreja Católica.

Mas, intelectual respeitado que era, ele propôs uma série de mudanças na organização do catolicismo de então.

E o que era para ser um movimento intramuros da fé católica acabou significando o nascedouro de vertentes do cristianismo.

Ele abriu uma porta, mas ele próprio acabou vivendo a conse-quência disso”, comenta a historiadora Jaquelini de Souza, professora na Universidade Regional do Cariri e pesquisadora nas Faculdades EST (antiga Escola Superior de Teologia), insti-tuição da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil.

Ele queria, na verdade, fazer uma reforma em que, na cabeça dele, seria um melhoramento [da Igreja Católica].

Lutero não queria criar uma nova igreja, suas 95 teses foram movidas pelo grande amor que ele tinha à Igreja Católica.

Na época, Lutero já era um religioso renomado, com respeitável carreira acadêmica.

Teólogo e doutor em bíblia, lecionava desde 1508 na Universi-dade de Wittenberg (Alemanha) e, estudioso de grego e hebraico, trabalhava em uma tradução das escrituras.

Como sacerdote, parecia incomodado com o monopólio da fé que a Igreja Católica detinha, sobretudo porque notou haver uma mercantilização caracterizada na questão das indulgências, o perdão pleno dos pecados que, naquele momento histórico, vinha sendo negociado por religiosos em troca de pagamentos monetários.

Em 31 de outubro de 1517, Lutero afixou 95 teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg.

Basicamente, ele questionava esse comércio de graças, o poder absoluto da Igreja na fé popular e afirmava que a Bíblia era o texto primordial que deveria ser considerado, acima de qual-quer autoridade papal.

A partir de então, o religioso passou a ser alvo de um longo processo até que, em 1520, o Vaticano determinou sua exco-munhão.

Se sair da Igreja Católica não estava nos planos do agora ex-monge agostiniano, fato é que o movimento que ele acabou suscitando fez com que surgissem outras denominações cristãs.

Nesse sentido, pode-se afirmar que o luteranismo foi pioneiro, já que antes dele, no mundo ocidental, o cristianismo era pra-ticado apenas por católicos.

Lutero, recusando-se a se retratar,
em obra de Anton Von Werner -
© Reprodução

Lutero promoveu o fim do monopólio católico em relação aos bens de salvação”, pontua o historiador, teólogo e filósofo Ger-son Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Isto porque, principalmente ao longo da Idade Média na Europa, o entendimento predominante era que para ser salvo era pre-ciso ser batizado e seguir os ensinamentos da Igreja Católica.

Não estar na Igreja Católica era estar no inferno, era ser al-guém destituído da graça de Deus.

Era assim que funcionava”, completa Moraes.

O lema latino era
extra ecclesiam nulla salus”, ou seja, vigo-rava a ideia de que não havia salvação que fosse fora da Igreja.

Lutero não queria romper com a Igreja, mas ele rompe com is-so, com essa ideia.

E o processo todo leva a sua saída [do catolicismo]”, explica o teólogo.

Afinal, depois da publicação das teses e do julgamento religioso, Lutero acabou excomungado.

Em outras palavras, ele se tornou exatamente isso: alguém que estava fora da Igreja, portanto, na condição de não salvo.

Mas o que ninguém imaginava era que ele encontraria apoio de uma elite germânica e, em pouco tempo, cerca de três ou quatro anos depois, suas ideias já tinham encontrado solo fértil em tantas mentes e corações que uma nova religiosidade aca-bou surgindo.

Um movimento que, enfim, colocou fim ao monopólio católi-co”, diz Moraes.

O protestantismo nasceu assim, como um movimento plural e sem papa”, pontua o teólogo.

E este é o legado de Lutero, um movimento de não obediência ao bispo de Roma, uma religiosidade cristã que não ficava abai-xo do guarda-chuva católico.

Não era mais preciso ser católico para ser salvo, já que, no novo entendimento, o único mediador entre Deus e os homens é Je-sus, e não mais o papa.

Fundamentos

Nesse sentido”, completa Moraes, “Lutero pode ser o pai de todas as igrejas que daí surgiram.

Mas é pai mesmo de todas?

Difícil dizer.

O que ele é, sem dúvida, é pai de um movimento que rompe com a Igreja Católica.

O fundamento do luteranismo não era mais uma figura absolu-tista teocrática, no caso, o papa.

Mas, sim, a bíblia, ou seja, os textos considerados sagrados.

Nos fundamentos de Lutero, há a centralidade da bíblia”, co-menta Moraes.

E, claro, para contrapor ao comércio das indulgências, a ideia de que a salvação vem da graça divina, da fé.

Lutero acabou sendo a grande pedra fundamental para o surgi-mento de outras tradições cristãs porque para ele, entre tradi-ção bíblia e autoridade papal, a primazia era da bíblia”, pontua Souza.

Obviamente que ele, como professor de bíblia, universitário, doutor, ele fazia a interpretação a partir da exegese e da her-menêutica, ele tinha as regras na cabeça dele e jamais descon-siderava o texto dos pais da Igreja, os escritos dos grandes dou-tores.

Lutero, em retrato de Lucas Cranach, hoje em
domínio público © Reprodução

A historiadora lembra que, por outro lado, essa ideia de incen-tivar a livre interpretação da bíblia também possibilitou leituras equivocadas e interpretações rasas que perduram até hoje.

Lutero tinha na cabeça regras hermenêuticas de interpretação das sagradas escrituras e a importância de caminhar ao lado dos doutores da igreja, mas isso abriu caminho para as demais pes-soas, abriu a caixa de Pandora e ficou incontrolável”, diz.

Não foi a intenção dele.

Não foi a intenção dele nem criar uma nova Igreja, mas ele abriu a caixa de Pandora.

Mas pesquisadores ressaltam que Lutero mesmo nunca preten-deu sair do catolicismo e muito menos criar uma própria igreja.

Existe uma tradição que diz que quando ele estava próximo da morte e a igreja daqueles que seguiam suas ideias já vinha sen-do chamada de luterana, ele não gostava”, afirma Souza.

Ele dizia que a igreja era de Cristo e não dele.

O que seria então a igreja de Lutero?

Acho que não existe.

Não posso afirmar que tal igreja seja a luterana pura e todas as outras sejam versões, isso não existe por conta da especificida-de da própria história de cada localidade e como o luteranismo se desenvolveu”, diz a historiadora.

Para ela, a razão por não existir uma igreja propriamente segui-dora de Lutero é que o norte dos que praticam a religiosidade segundo tal preceito nunca é o fundador, mas sim, a figura de Jesus Cristo.

Por outro lado, ela aponta algumas nuances que seriam caracte-rísticas dos luteranos, em comparação com católicos ou cristãos de outras denominações.

Eu diria que a liberdade de consciência, a liberdade de viver a fé.

Isso é forte no luteranismo.

O luterano não aceita um legalismo, mas vive aquilo que ele crie em liberdade, por amor”, comenta.

A herdeira natural do luteranismo é a Igreja Luterana, mas po-demos dizer que o movimento inicial de Lutero acabou sendo apropriado e ressignificado por todas as igrejas ditas protestan-tes porque essas acabaram, de alguma maneira, também seguin-do essa trilha que foi aberta por ele”, acrescenta Moraes.

Lutero deixou um tesouro, que possibilita novas interpretações e ressignificações porque estamos lidando com esse negócio vi-vo chamado religião”, complementa o teólogo.

Três pontos fundamentais

Estátua de Lutero em Dresden, na Alemanha
© Getty Images

Souza enfatiza que eram três os pontos fundamentais defen-didos por Lutero, e que ainda ressoam fortemente em boa parte das igrejas protestantes contemporâneas.

O primeiro foi a defesa da salvação pela fé, pela graça divina, por conta do entendimento de que Jesus Cristo se sacrificou em prol da salvação das pessoas.

Outra questão é a fundamentação bíblica, que deve ser o norte da religiosidade e cujo entendimento pode ser feito individual-mente, por cada um, naquilo que se costuma chamar de “livre examedas sagradas escrituras.

Não à toa, esse movimento fez com que a bíblia, antes comu-mente restrita ao latim, língua oficial do catolicismo, passasse a ganhar traduções nas línguas praticadas em cada país.

Lutero, responsável pela tradução da escritura para o alemão, em publicação de 1534, é reconhecido com de suma importân-cia também para a consolidação do idioma ali praticado.

Ele é o pai da língua alemã, o pai da pátria”, define a historia-dora.

O terceiro ponto importante é o entendimento do sacerdócio universal, ou seja, a ideia de que não havia diferença entre cle-ro e fiéis”, diz Souza.

Estes são os três fundamentos, eu diria, do protestantismo ra-iz.

E estão presentes em igrejas pentecostais históricas, muito em-bora elas não reconheçam a paternidade de Lutero.

Esse reconhecimento, aponta a historiadora, é cada vez mais ra-ro mesmo no meio evangélico.

Em quase absoluto, se desconhece Lutero.

Teólogos e intelectuais protestantes obviamente o conhecem.

Mas para o povo ele é um completo desconhecido”, lamenta.

Atualidade

Ao analisar a conjuntura no Brasil e a trajetória de Lutero, a historiadora Souza diz que ele não se identificaria ao observar a evolução desse legado.

Isto porque, em seu entendimento, a maior parte das denomina-ções, sobretudo as neopentecostais e que se baseiam na chama-da teologia da prosperidade, enveredou por um caminho que nada tem a ver com os princípios de Lutero.

O meio evangélico brasileiro hoje é cheio de gurus, de pasto-res que determinam basicamente o que as pessoas devem fazer, pensar, inclusive em quem devem votar”, diz.

“Não há nada mais distante do pensamento de Lutero do que isso.”

Se Lutero fosse vivo hoje, ele se sentiria muito mais à vontade - excetuando algumas igrejas como a anglicana e alguns ramos metodistas - numa missa [católica] do que num culto evangé-lico”, afirma.

Essa é minha opinião.

Por causa da distância desse evangelicalismo brasileiro em com-paração ao que ele entendia ser uma comunidade cristã.

 



 

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