Cristina Da Suécia
 
A Rainha Sueca Que Se Converteu Ao Catolicismo,
 
Foi Reinar Em Roma E Virou Ícone LGBT
 
Fonte: MSN - 27/08/2018
 
 

Rainha Cristina da Suécia

Pintura da Rainha Cristina, da Suécia,  que desafiou o establishment na Europa e é tida como um dos ícones da contracultura.

© Domínio público

 

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Sexualmente ambígua.

Culta e Inteligente.

Irreverente e carismática.

Amante das artes, da literatura, dos cavalos.

Temperamental e vingativa.

Nada convencional e com uma vida cheia de reviravoltas.

Todos esses adjetivos se aplicam a Cristina, coroada Monarca da Suécia em 1650, figura lendária que desafiou o establishment na Europa do século 17 e que hoje é um dos ícones da contracultura e da comunidade LGBT
, além de importante cole-cionadora e patrona das artes.

Em entrevista ao programa Forum, do Serviço Mundial da BBC, dois historiadores e a autora de uma biografia de Cristina da Suécia tentam explicar o eterno fascínio dessa grande personagem histórica.

Comecemos, no entanto, por ouvir o testemunho de alguém que conheceu a Rainha Cristina, como o Duque de Guise, um francês bon-vivant que nasceu em Paris em 1614 e morreu em 1664:

“Ela veste sapatos de homem, e sua voz e gestos são masculinos.

Adora exibir sua perícia no manejo de cavalos.

Fala oito línguas, entende de pintura tão bem como qualquer um e sabe muito mais do que eu sobre as intrigas da nossa corte.

Ela é uma pessoa absolutamente extraordinária.”

Cristina teria sido criada como menino e não quis se casar.

Tema de livros, peças e filmes - entre eles, o clássico do cinema Rainha Cristina, estrelado por Greta Garbo em 1933 -, a vida de Cristina mais parece a trama de um romance.

Cristina Alexandra nasceu em Estocolmo em 1626, única filha legítima sobre-vivente do poderoso Rei sueco Gustavo Adolfo, tido como o homem que, no início do século 17, fez da Suécia uma das mais poderosas nações europeias.

O nascimento de Cristina, no entanto, foi cercado de confusão, explica Verônica Buckley, autora da biografia Cristina, Rainha da Suécia: A vida atribulada de uma excêntrica europeia (Objetiva, 2006).

“Não estava claro se o bebê era menina ou menino.

Geneticistas hoje em dia dizem que um em cada 200 bebês nascem sem caracte-rísticas sexuais definidas.

E, naquela época, (a monarquia sueca) queria desesperadamente um Príncipe.

Então, correram para anunciar que (o bebê) era menino.

Foi somente na manhã seguinte, cinco ou seis horas depois do nascimento, que uma tia do bebê finalmente ousou contar ao pai, (o Rei) Gustavo Adolfo, que o bebê era na verdade uma menina.”

Cristina era filha do poderoso Rei Gustavo Adolfo, retratado abaixo em estátua em Estocolmo

© Getty Images

Relatos do período indicam que Cristina foi criada como um menino.

Estudou os clássicos da literatura, aprendeu línguas estrangeiras, equitação e esgrima.

Ela foi educada, acima de tudo, para Reinar”, conta o historiador Stefano Fogelberg Rota.

“E o modelo existente de um soberano, naquele período, era mais masculino do que feminino.”

Durante toda a sua vida, especulou-se que Cristina seria lésbica - ou bissexual.

“Ela estava interagindo em um mundo masculino, a política.

Um ambiente do qual mulheres estavam excluídas na época.

Isso dava margem a muitos rumores.

Por exemplo, a respeito de possíveis casos amorosos.

Acreditava-se, por exemplo, que sua dama de companhia era também sua aman-te.

Mas temos apenas algumas cartas - e muitas lendas - confirmando isso”, pros-segue o historiador Rota.

Por volta de 1640, Cristina anunciou que não se casaria.

“O que alimentava esses rumores era o fato de que ela não queria se casar.

Ela deixava claro que não queria gerar uma criança”, diz Rota.

Esta vívida descrição da Rainha, incluída na biografia escrita por Buckley, ajuda a completar o quadro: “Apesar de ter pequena estatura e feição delicada, os movimentos e gestos da jovem Rainha estavam longe de femininos.

Ela andava como um homem, sentava-se e cavalgava como um homem e comia e xingava como o mais grosseiro dos soldados.

Sua voz era profunda e gutural.

Seu temperamento, esquentado.”

“Ela queria Reinar, mas não queria governar.”

Em 1632, quando Cristina tinha seis anos de idade, seu pai morreu em uma batalha.

Daí em diante, como Monarca absoluta, a menina cresceu acostumada a ver ho-mens adultos se curvarem em sua presença.

Cristina não queria se casar e não queria gerar uma criança

© Getty Images

Em 1650, aos 24 anos, Cristina Alexandra foi coroada Monarca da Suécia e pôde, finalmente, Reinar.

No entanto, apesar de extremamente confiante, Cristina não tinha tempera-mento para a vida política: ficava entediada, explica Buckley.

“Ela era inteligente e, à primeira vista, causava boa impressão.

Entendia de muitos assuntos, filosofia, astronomia, línguas.

Mas não gostava de se aprofundar nas coisas.

Não tinha o temperamento para isso”, diz.

“E quando se deparava com pessoas que sabiam muito mais do que ela, logo se livrava delas.

Quando não podia se livrar da pessoa, como no caso do chanceler sueco, por exemplo, tentava minar sua autoridade a todo custo.

Inclusive, por meio de mentiras e dissimulação.”

Governar era um problema para Cristina porque ela não sabia ceder, fazer acor-dos.

Queria Reinar, mas não queria Governar.”, diz a biógrafa.

Rainha era amante das artes e da filosofia.

Por outro lado, amante das artes e da filosofia, leitora ávida e dona de uma vasta biblioteca, Cristina teve influência positiva sobre a vida cultural sueca.

“Seu Reinado trouxe grande renovação às artes e ciências.

No período de sua coroação, a cidade de Estocolmo, antes um fim de mundo, pas-sou a atrair alguns dos maiores talentos e mentes da Europa
”, conta a histo-riadora Theresa Sjovoll.

O mais famoso intelectual a visitar a Suécia nesse período foi o filósofo francês René Descartes, conta Sjovoll.

No entanto, em carta a uma ex-aluna, o filósofo reclamou que em vez de discutir filosofia com ele, Cristina estava mais interessada em estudar grego e literatura.

“Descartes se sentiu desprezado e morreu quatro meses depois.

A julgar pelas cartas, é de se pensar que ele tenha sido vítima de orgulho ferido e do terrível inverno sueco”, pondera a historiadora.

Também nesse período, a chegada à Suécia de um grande carregamento de obje-tos saqueados durante uma guerra em Praga projetara, por toda a Europa, o nome e a reputação de Cristina da Suécia como importante colecionadora de arte - livros, manuscritos, moedas, medalhas, esculturas e pinturas.

“Ela também enviava seus próprios agentes à Europa e até ao Egito, em busca de objetos para enriquecer sua coleção”, explica Sjovoll.

O filósofo francês René Descartes visitou a Suécia durante o Reinado de Cristina

© Getty Images

Com popularidade em queda, Cristina elabora sua fuga.

A Rainha Cristina, no entanto, também sabia ser cruel e vingativa.

Um bom exemplo disso é o caso de Arnold Messenius e seu filho.

Messenius pertencia a uma família que se opunha às políticas do governo sueco e, por isso, havia sido colocado na cadeia pelo chanceler do país - um homem de quem Cristina não gostava, conta a biógrafa Buckley.

“O chanceler era um homem brilhante e Cristina não gostava de ser eclipsada.

Na infância, tivera de aturá-lo.

Mas quando chegou à maioridade, apenas para contrariá-lo, ordenou que Messe-nius fosse solto.


Ela deu ao ex-prisioneiro muito dinheiro, fez dele um nobre e nomeou-o histori-ador real.

O problema é que, ao atingir a maioridade, Cristina agora também respondia pelas decisões do governo, e Messenius passou a criticar suas ações.

“Ela não gostou disso.

Para ela, isso não era apenas ingratidão - era traição.”

Messenius foi preso novamente e condenado à morte.

Messenius foi decapitado e seu filho de 17 anos também foi executado, de ma-neira ainda mais cruel.

Esse episódio marca o momento em que a Rainha sueca começa a perder sua popularidade.

Mas é também nessa fase, a partir de 1651, que ela se dá conta de que a vida como Rainha da Suécia não lhe agrada.

Cristina começa a planejar sua grande escapada.

Convence seu primo, Carlos Gustavo, a assumir o trono em seu lugar enquanto negocia, no Parlamento, sua abdicação.

Em 1653, envia alguns de seus mais valiosos pertences para a Europa no navio Fortuna.

E, crucialmente, decide se converter ao catolicismo - o que lhe abriria as portas da ensolarada Roma, centro do catolicismo no mundo.

Mas tudo tinha de ser feito em segredo, explica Buckley.

A conversão do protestantismo luterano para o catolicismo, naquele período, era uma decisão muito séria.

Durante séculos, por toda a Europa, batalhas sangrentas eram travadas entre pro-testantes e católicos.

O próprio pai de Cristina, Gustavo Adolfo, tinha perdido a vida lutando pelo protestantismo na Alemanha.

Finalmente, em junho de 1654, Cristina conseguiu abdicar ao trono e sair da Sué-cia.

Ela tinha 27 anos.

Mas não seguiu diretamente para Roma - isso seria arriscado demais.

Conversão ao catolicismo rumo à Roma.

Para disfarçar suas intenções de se converter, Cristina viajou parte do caminho incógnita e foi primeiro para a Dinamarca e depois para a Holanda, conta o historiador Stefano Rota.

“Cristina tinha de ser cuidadosa também porque dependia economicamente da Suécia.”

A Rainha sueca converteu-se ao catolicismo muito discretamente em Bruxelas, em 1655, na capela particular do arquiduque austríaco Leopold Wilhelm.

E prosseguiu, com sua comitiva de 250 pessoas, a caminho de Roma.

Cristina entrou em Roma pelo Portão do Povo, sobre um cavalo branco, vestida modestamente de cinza

© Getty Images

Em dezembro de 1655, Cristina fez sua entrada oficial em Roma, sendo recebida com pompas e glórias raramente oferecidas a mulheres.

“Não há dúvidas de que o papa queria celebrar a nova Rainha católica”, explica o historiador Rota.

“Alexandre 7º acabava de ser eleito papa e queria restaurar a imagem da Igreja Católica, desgastada pela guerra.”

Apesar de ter sido presenteada com uma luxuosa carruagem, encomendada espe-cialmente para a ocasião, a Rainha Suéca
preferiu fazer sua entrada triunfal de outra maneira, conta Sjovoll.

Toda a Roma foi às ruas aguardar, de pé, a chegada da Rainha”, diz a historia-dora.

“Todos os cardeais e a nobreza estavam presentes.

Cristina entrou na cidade pelo Portão do Povo, sobre um cavalo branco, vestida modestamente de cinza.

À noite, sua chegada foi celebrada com uma festa de fogos de artifício e, no dia seguinte, ela foi à missa, onde recebeu do papa a eucaristia.

Roma continuou dando boas vindas e saudando a Rainha durante vários meses.”

A fundação da Accademia Dell'Arcadia
e um romance.

Cristina foi morar em um suntuoso palácio, o Palazzo Farnese.

Reforçando sua reputação como patrona das artes, uma de suas primeiras inicia-tivas foi fundar uma academia.

Frequentadores desfrutavam da música, do teatro e da literatura.

Ponto de encontro da nobreza e de cardeais interessados em cultura, a academia tinha como proposta promover discussões filosóficas e os ideais da Antiguidade Clássica.

A academia tinha grande prestígio, explica Stefano Rota.

“Cristina cercou-se dos melhores acadêmicos e poetas de Roma.

Por volta da década de 1670, a academia já se estabelecera e passou a cumprir papel importante na renovação da poesia italiana.”

Hoje, 300 anos mais tarde, a Academia Dell'Arcadia permanece ativa em Roma.

Cristina também mantinha sua própria orquestra.

E o renomado compositor Arcangelo Corelli, que vivia em Roma, compôs 12 sona-tas em sua homenagem.

Primeiras peças publicadas por Corelli, as 12 Sonatas em Trio Opus 1, são hoje peças importantes - e muito populares - do repertório barroco.

Entre os visitantes da academia fundada por Cristina estava o jovem clérigo Decio Azzolino, que viria a se tornar a pessoa mais importante na vida de Cristina
dali em diante.

“Ele era confidente, conselheiro, uma espécie de primeiro-ministro na corte romana de Cristina.

Parceiro político, ele também lhe deu assistência quando ela reformou um palá-cio e na aquisição de obras de arte para a coleção da Rainha”, explica Rota.

Cristina e Azzolino tinham em comum o amor pela poesia e pelas artes.

“Está provado que os dois tiveram um relacionamento romântico, embora não se saiba ao certo até onde foi esse relacionamento.

Quando Cristina
morreu, deixou tudo o que tinha para ele”, acrescenta Sjovoll.

O compositor Arcangelo Corelli compôs 12 sonatas em homenagem a Cristina

© Getty Images

 

12 Sonatas Em Homenagem A Cristina - Autoria Arcangelo Corelli

As Sonatas

1. Sonata da Chiesa a trè No.1 in F
2. Sonata da Chiesa a trè No.2 in E mi 6:17
3. Sonata da Chiesa a trè No.3 in A 11:24
4. Sonata da Chiesa a trè No.4 in A mi 17:50
5. Sonata da Chiesa a trè No.5 in B flat 22:55
6. Sonata da Chiesa a trè No.6 in B mi 29:10
7. Sonata da Chiesa a trè No.7 in C 35:46
8. Sonata da Chiesa a trè No.8 in C mi 39:58
9. Sonata da Chiesa a trè No.9 in G 46:00
10. Sonata da Chiesa a trè No.10 in G mi 51:59
11. Sonata da Chiesa a trè No.11 in D mi 57:08
12. Sonata da Chiesa a trè No.12 in D 1:02:18

Musica Amphion
Pieter-Jan Belder, Organ, Harpsichord, Conducting

Dívidas, reveses, contratempos e morte.

Quando abdicou ao trono da Suécia, Cristina deixou claro que manteria o título de Rainha.

E, para tanto, tinha de viver como Rainha, explica Theresa Sjovoll.

A pensão que ela recebia da Suécia, no entanto, era modesta, e Cristina tinha muitas dívidas.

Sem pagamento, seus serviçais às vezes tinham de roubar móveis e prataria do palácio para sobreviver.

Na tentativa de resolver a crônica falta de dinheiro, Cristina se candidatou ao posto de Rainha de Nápoles, mas foi vencida na campanha pelo astuto cardeal Mazarin
.

Nesse mesmo período, 1657, em outro incidente notório, característico de seu temperamento explosivo e vingativo, a Rainha sueca ordenou o assassinato de um de seus servidores, o marquês Monaldeschi.

Segundo ela, por deslealdade.

O caso repercutiu mal.

Com popularidade em baixa, Cristina teve de se mudar para um outro palácio, o Riario, hoje Palazzo Corsini, onde viveria até o fim de sua vida.

“Os jardins do palácio são hoje o Jardim Botânico de Roma.

O que era intrigante a respeito do palácio era o tipo de gente que o frequentava.

Ela recebia cardeais, embaixadores, acadêmicos e artistas
”, conta a historiadora Sjovoll.

Apesar das dificuldades, durante os 30 anos em que viveu em Roma, Cristina foi considerada, extraoficialmente, a Rainha da cidade.

E seu estilo de vida jamais poderia ser qualificado como “modesto”, explica Sjovoll.

“Em uma ocasião, no aniversário da Rainha, o próprio papa, Clemente 9º, foi visitá-la.

Isso era muito incomum, já que o papa não visitava ninguém socialmente.”

No ano em que morreu, 1689, aos 62 anos de idade, Cristina tinha 183 serviçais.

Todos moravam no palácio.

“Ou seja, ela definitivamente vivia como uma Rainha
”, conclui a historiadora.

Segundo relatos, a Rainha queria um funeral modesto, mas em vez disso, as cerimônias que marcaram sua morte foram espetaculares.

Seu corpo ficou exposto no Palazzo Riario durante quatro dias.

Metade de Roma foi visitar o corpo.

Cristina foi enterrada no Vaticano - uma entre três mulheres a receber essa honraria.

“Ela era um símbolo muito útil para os católicos, por isso continua enterrada na Basílica de São Pedro, ao lado do Papa João Paulo 2º, morto em 2005 ”, diz Stefano Rota.

Fachada do Palazzo Farnese, onde Cristina viveu em Roma

© Getty Images

O legado da Rainha Cristina.

“Sua vasta e riquíssima coleção de arte hoje está dispersa pelo mundo, entre vários museus e colecionadores particulares”, diz Sjovoll.

Ao longo dos séculos, vários movimentos se apropriaram da figura da Rainha Cristina da Suécia.

Para a biógrafa Veronica Buckley, Cristina simboliza hoje tudo o que não é convencional.

“Ela é um símbolo para as pessoas que ousam ser diferentes, ou para pessoas que são diferentes, queiram ou não.

É um ícone para homossexuais, lésbicas e pessoas transgênero”, diz Buckley.

Mas Cristina
não foi abraçada pelo movimento feminista, explica a biógrafa.

“Ela sempre considerou o fato de ser mulher, nas palavras dela, “seu maior defeito”.

Mas era uma estrela.

Acho que são a sua exuberância e seu espírito rebelde que fazem com que ela continue atraindo o interesse das pessoas nos dias de hoje”, conclui Buckley.

Para alguns historiadores, no entanto, a vida tempestuosa e a atitude de desafio em relação ao establishment eclipsaram um aspecto fundamental da vida da Rainha sueca: seu papel como patrona das artes e colecionadora.