Uma Páscoa especial
Poetisa Maju Guerra


Lembro-me saudosa e melancólica da Páscoa dos meus seis anos.

Na época morava na casa da minha avó num subúrbio do Rio: família grande, casa grande, lugar para brincar a escolher, galinhas, galos, gatos e cachorros convivendo em harmonia, jardim, horta, pé de goiaba, de manga, de jabuticaba, de carambola, de cajá, o meu preferido.

Lugar melhor para criança não  poderia existir.

Havia um chorão, gostava muito de ficar debaixo dele como se quisesse consolá-lo.

Onde já se viu uma árvore chamada chorão que tinha folhas compridas que caíam como se a árvore estivesse mesmo a chorar?

Eu gostava dele seja lá qual fosse o motivo para ele ser chorão, e era muito melhor derramar lágrimas perto de uma amiga do que sozinho.

Aquela Páscoa me parecia ser apenas mais uma celebração religiosa em família, contudo se tornou inesquecível.

Tudo começou, como sempre, no domingo que antecedia o da Páscoa, o Domingo de Ramos.

Íamos todos à missa, naquele ano eu estava toda prosa no meu vestido cor-de-rosa rodado cheio de bordados e fitas, feito pela minha avó.

Minha mãe havia me explicado há algum tempo que aquela missa era muito importante, porque Jesus antes da Semana Santa entrara em Jerusalém montado num jumento, as ruas cheias de ramos de árvores e de folhas de palmeiras que o povo da cidade cobrira para recebê-lo, Ele era o filho de Deus.

Ao final da missa recebíamos galhos de palmeira e os levávamos para casa.

Sempre pensei neste domingo como muito importante de verdade.

Minha mãe se apavorava com raios e trovões.

Quando chovia forte com raios e trovões ela colocava os ramos de palmeira debaixo da cama e dizia que raio nenhum na casa entraria, que a casa estava protegida.

Sempre acreditei no que ela falava, eram os ramos do filho de Deus que nos guardavam.

Então a Semana Santa começava.

Minha avó, minha mãe, minha tia iam ficando tristonhas devagarzinho lembrando do sofrimento de Jesus, pensava eu.

Não comíamos carne, era proibido.

Quando chegava a sexta-feira da Paixão falava-se pouco e baixinho, a tristeza imperava, eu também ficava triste, sabia que Jesus ia morrer na cruz para nos salvar.

Pouco brincava, ficava no recolhimento familiar.

Não se podia varrer e nem tirar o pó da casa, minha avó cobria os móveis das salas com panos brancos, era muito assustador também.

E se comia mais peixe, eu contrita não reclamava de nada.

Era tudo solene e sagrado.

No sábado de aleluia as coisas começavam a ficar mais alegres, menos contidas.

Os móveis eram descobertos e falava-se mais e mais alto, o almoço era mais farto e variado.

Era dia de malhar o Judas, o homem que traiu Jesus e fez com que ele morresse crucificado.

Não queria aproximação com o Judas, para mim ele não era uma pessoa com quem valesse a pena eu perder meu tempo.

No sábado toda a família vinha para a casa da  minha avó.

Era um monte de tios e de tias, de primos e de primas, tinha gente muita para eu brincar além do meu irmão e da minha prima, era uma farra completa.

Meus primos mais velhos iam para a rua fazer um boneco de pano, o Judas.

Eu não ia não.

Não queria saber do Judas, já tinha morrido mesmo, do quê ao certo ninguém me explicou, mas devia ter morrido de castigo porque o que ele tinha feito fora muito, mas muito ruim, eu concluía.

Depois que o boneco ficava pronto, a meninada e até adultos o penduravam bem alto num poste.

Quando chegava a noite uma fogueira era acessa no meio da rua, todo mundo brincava e se divertia.

Agora podia, minha avó já me contara em outra ocasião que Jesus ia nascer de novo.

Aquela revelação me intrigava muito, mas bem, pensava eu com respeito, ele é o filho de Deus, consegue realizar qualquer coisa.

Lá pelo meio  da festa começavam a malhar o Judas (naquela época era o Judas mesmo), ouvia-se de longe a gri-taria, as pessoas com pedaços de pau na não batendo e batendo, eu fechava os olhos e pensava: não gosto disso, o homem já morreu, precisa estar matando de novo todo ano?

Depois queimavam o boneco e era uma balbúrdia.

Já era hora de eu entrar para dormir, só os mais velhos ficavam acordados até mais tarde.

Lembro-me de que ia dormir muito assustada com a violência, mas acabava por esquecer, o dia seguinte era a Páscoa.

Acordávamos bem cedo, tomávamos o café da manhã e aí vinha a melhor parte.

O coelhinho da Páscoa ia chegar com os nossos ovos de chocolate.

Nossos pais escondiam os ovos que levavam nossos nomes.

Eu já sabia ler, ninguém precisaria mais ler para mim desta vez, pensava muito orgulhosa.

De repente ouvíamos uma batida forte na porta da frente, minha avó corria, a abria e fechava rápido dizendo: o coelhinho já passou e mandou dizer que os ovos já estão guardados.

Tudo virava uma grande confusão, todo mundo correndo a procurar os ovos, se batendo uns nos outros até que todos encontravam os seus, era uma festança.

Eu perguntava para minha mãe porque nunca víamos o coelhinho, ela afirmava que ele era muito veloz, precisava entregar os ovos para as crianças do mundo todo, como eu admirava o coelhinho.

E tome-lhe chocolate que eu adorava e só comia em ocasiões especiais.

Meu pai dizia que chocolate era perigoso porque dava cáries nos dentes, e dor de dente não era coisa boa.

Bem, minha primeira cárie surgiu quando eu tinha 18 anos, meu pai devia saber o que estava fazendo.

Nunca entendia muito bem o que era que o coelho e o ovo de chocolate de Páscoa tinham a ver com Jesus, coelho nem botava ovo.

Mas não adiantava perguntar, respondiam que era assim e pronto.

E quando adulto falava desta maneira devia ser algo bem complicado de explicar, o melhor era acreditar e pronto também.

Chocolate era gostoso demais e o almoço e as sobremesas melhores ainda, as brincadeiras então...

A cozinha ficava cheia, cada uma fazendo o que sabia fazer de melhor.

Era divertido tentar roubar empada de camarão, se me pegassem tome-lhe bolo na mão, mas era de leve, todo mundo ria.

Minha mãe ficava menos braba naquele dia porque Jesus havia nascido de novo, eu concluía, tinha um excelente motivo para ficar alegre.

O que tornou aquela Páscoa tão especial foi que eu conheci o coelhinho, imagine só que distinção conhecer o coelhinho da Páscoa.

Ele não falava, mas entregava o ovo muito bem e para todas as crianças que existiam, era o que importava.

Um tio trouxe um coelhinho de verdade, lindo e gordinho, todo branquinho, o nariz vermelhinho ficava se mexen-do, ele era maravilhoso.

Nós, os pequenos, ficamos deslumbrados.

Os mais velhos também, pois apesar de saberem da verdade sobre ovos de Páscoa e coelhinhos nada nos conta-vam, só mais tarde, creio que precisavam respeitar as ordens dos adultos.

Ele ficou no meu colo por um longo tempo, era o bichinho mais lindo que eu já havia conhecido, também não poderia ser de outra forma, Deus o criara para trazer os ovos de chocolate da Páscoa do seu filho Jesus que nascera de novo, eu pensava.

O coelhinho ficou num cercadinho por todo o dia.

Toda hora lá eu ia, abraçava e beijava o coelho, estava completamente apaixonada.

Mais tarde ele se foi, porém nunca esqueci da emoção que senti, dormi sonhando com coelhos e anjos.

E até hoje quando celebro a Páscoa com a minha família comemorando a ressurreição de Jesus Cristo, recordo-me enternecida do coelhinho da Páscoa que ficou no meu colo.

E nunca comi coelho na vida, não conseguiria comer o coelhinho da Páscoa de Jesus, o que para mim o coelho simboliza até hoje.

A minha criança não me deixa esquecer.

Maju Guerra


 

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