Feliz Natal, "Seu Jayme"
(Crônica)

       Já aposentado, residi vários anos em uma casa em Jacarepaguá (RJ), mais precisamente à Rua Comandante Rubens Silva, no bairro Fre-guesia.

       No trecho do quarteirão em que eu morava, havia cinco edifícios de apartamentos, com não mais que dez andares cada um. Todas as manhãs e final das tardes, muitos desses moradores, desciam com seus cães para fazerem coco  “na minha calçada” e outras. A minoria trazia a tiracolo uma pequena pá, vassourinha e saco plástico para recolher o excremento de seu respectivo animal.  A maioria, não! A alguns dos “descuidados”, eu interpelava a respeito da falta de civilidade e recebia as respostas mais variadas: “O sr. quer tirar o trabalho do gari?” ou “Você vai querer que o cachorro cague no tapete da minha sala?” ou “Por que não limpa você?” e outras impublicáveis que prefiro omiti-las, a bem do decoro. Com um deles, argumentei que os transeuntes  pode-riam pisar naqueles detritos e emporcalhar todas as calçadas. Ele res-pondeu-me: “Pô, só cego não enxerga um coco!”. O gari, fiel cumpridor da lei, disse-me que a limpeza e conservação da calçada eram da responsabilidade exclusiva do morador. E é aí que começa esta minha crônica.

       Numa rua transversal (Araguaia) morava o “Seu Jayme”, deficiente visual e, invariavelmente (não estando chovendo), lá pelas 17:00h, ele passava com sua bengala branca pelas calçadas, pisando nos cocos. Como eu tinha que comprar pão para o lanche da tarde, resolvi sair sempre àquela hora e acompanhar o Sr. Jayme, “salvando-o do campo minado”. No transcurso de nossas diárias caminhadas, de braços dados, comecei a aprender a enxergar a vida de forma diferente.

       O “Seu Jayme” considerava-se  um privilegiado por Deus!  Ele “só perdeu a visão aos 36 anos de idade”, depois de casado e ser pai de dois filhos. Então, a lógica dele, era que, já casado há mais de 30 anos, guar-dara em sua mente a imagem da mulher ainda quando nova, assim como a de seus dois filhos, agora já casados. Nunca vi meus netos, disse-me ele, mas sinto o calor de seus aconchegos e afetos. Ele não tinha medo da escuridão, não precisava se preocupar com o entardecer. Tinha no-ção exata de onde estava e para onde ia. Ao passar pela padaria, sempre lembrava-me: “Não esqueça de comprar seu pão” e eu respon-dia: “Na volta”. Ele sentia o aroma do pão fresquinho que emanava da panificadora! Seu olfato, tato, audição eram em  muito, superiores aos meus. Talvez até  ganhasse de mim num paladar mais apurado, identifi-cando o alimento, sem vê-lo.

       Nosso indefectível destino era uma praça chamada Professora Camisão. Lá, sentado em um dos bancos, já estava um amigo do “Seu Jayme”, também  deficiente visual. Participava eu um pouquinho do “papo a três” e retornava em  meu caminho para comprar o pão, de volta à minha casa. Na despedida, eles costumavam brincar comigo: “Não se preocupe conosco, se ficarmos até tarde e escurecer, não fará diferença pra nós...”. “Vamos ficar vendo as morenas  passar” e riam sempre felizes das piadas, ao ouvirem minha gargalhada.

       Um certo dia, atrasei-me e o “Seu Jayme” chamou-me, baten-do com a bengala no portão de ferro do meu jardim. Então, passei a ir ao encontro do meu amigo na esquina e já vinha com ele de braços dados. Ao passar pela minha porta, ele dizia-me: “É aí a sua casa!”. Per-guntando como ele sabia, respondia-me:  “Segredo que não posso reve-lar”; e ria, ria, ria...” Se você apagar a luz, enfio a linha na agulha, primeiro que você!” Enquanto isso, tinha eu vontade de soluçar e entregar-me à emoção, mas me continha!

       Com o decorrer de uns dois meses, os “espalhadores de excremen-tos” nos viam passar, desviando das “obras” de  seus cães. Diminu-iu substancialmente a quantidade deles que parece ter entendido meus apelos, cada um trazendo agora seus apetrechos para recolhimento das fezes caninas. Até passaram a me cumprimentar e uns dois ou três me pediram desculpas pelas respostas ríspidas que haviam me dado! Incrível, não?!

       Bom,  eu mudei-me de lá em meio a despedidas regadas por lágri-mas e não soube mais sobre o meu amigo. Mas, de uma coisa te-nho plena certeza: “Sei que ele continua percorrendo seu caminho mui-to mais iluminado e “limpo” que o meu. FELIZ NATAL, “Seu Jayme”!!!

Ary Franco



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