Todo filho é pai da morte de seu pai e da sua mãe

Colaboração recebida da amiga Conce em 22/05/2015


      Feliz do filho que é pai de seu pai e da sua mãe antes da mor-te, e triste do filho que aparece somente no enterro e não se des-pede um pouco por dia."

      Há uma quebra na história familiar onde as idades se acumu-lam e se sobrepõem e a ordem natural não tem sentido: é quando o filho se torna pai de seu pai e da sua mãe.

      É quando o pai envelhece e começa a trotear como se estivesse dentro de uma névoa.

      Lento, devagar, impreciso.

      É quando aquele pai que segurava com força nossa mão já não tem como se levantar sozinho.

      É quando aquele pai, outrora firme e intransponível, enfra-quece de vez e demora o dobro da respiração para sair de seu lu-gar.

      É quando aquele pai, que antigamente mandava e ordenava, hoje só suspira, só geme, só procura onde é a porta e onde é a ja-nela - tudo é corredor, tudo é longe.

      É quando aquele pai, antes disposto e trabalhador, fracassa ao tirar sua própria roupa e não lembrará de seus remédios.

      E nós, como filhos, não faremos outra coisa senão trocar de pa-pel e aceitar que somos responsáveis por aquela vida.

      Aquela vida que nos gerou depende de nossa vida para morrer em paz.

      Todo filho é pai da morte de seu pai.

      Ou, quem sabe, a velhice do pai e da mãe seja curiosamente nossa última gravidez.

      Nosso último ensinamento.

      Fase para devolver os cuidados que nos foram confiados ao lon-go de décadas, de retribuir o amor com a amizade da escolta.

      E assim como mudamos a casa para atender nossos bebês, ta-pando tomadas e colocando cercadinhos, vamos alterar a rotina dos móveis para criar os nossos pais.

      Uma das primeiras transformações acontece no banheiro.

      Seremos pais de nossos pais na hora de pôr uma barra no box do chuveiro.

      A barra é emblemática. A barra é simbólica. A barra é inaugu-rar um cotovelo das águas.

      Porque o chuveiro, simples e refrescante, agora é um temporal para os pés idosos de nossos protetores.

      Não podemos abandoná-los em nenhum momento, inventare-mos nossos braços nas paredes.

      A casa de quem cuida dos pais tem braços dos filhos pelas pa-redes.

      Nossos braços estarão espalhados, sob a forma de corrimões.

      Pois envelhecer é andar de mãos dadas com os objetos, enve-lhecer é subir escada mesmo sem degraus.

      Seremos estranhos em nossa residência.

      Observaremos cada detalhe com pavor e desconhecimento, com dúvida e preocupação.

      Seremos arquitetos, decoradores, engenheiros frustrados.

      Como não previmos que os pais adoecem e precisariam da gen-te?

      Nos arrependeremos dos sofás, das estátuas e do acesso cara-col, nos arrependeremos de cada obstáculo e tapete.

      E feliz do filho que é pai de seu pai antes da morte, e triste do filho que aparece somente no enterro e não se despede um pouco por dia.

      Meu amigo José Klein acompanhou o pai até seus derradeiros mi-nutos.

      No hospital, a enfermeira fazia a manobra da cama para a maca, buscando repor os lençóis, quando Zé gritou de sua cadeira:

      — Deixa que eu ajudo. Reuniu suas forças e pegou pela primei-ra vez seu pai no colo.

      Colocou o rosto de seu pai contra seu peito.

      Ajeitou em seus ombros o pai consumido pelo câncer: peque-no, enrugado, frágil, tremendo.

      Ficou segurando um bom tempo, um tempo equivalente à sua infância, um tempo equivalente à sua adolescência, um bom tem-po, um tempo interminável.

      Embalou o pai de um lado para o outro. Aninhou o pai. Acal-mou o pai.

      E apenas dizia, sussurrado: — Estou aqui, estou aqui, pai!

      O que um pai quer apenas ouvir no fim de sua vida é que seu filho está ali.

(Fabrício Carpinejar)



Fundo Musical Online: Meu querido, meu velho, meu amigo - Ray Conniff
 

 
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