Fervendo, em décimas

Eugénio de Sá

 

A cem graus ferve a água e dá o mote

Às fervuras que temos nesta vida

Ferve em tristeza uma causa perdida

Ou de um perdido amor ferve o derrote

Fervem uns olhos lindos ao dichote

Ferve numa quezília o palavrão

Ferve uma mãe que morre d’aflição

Ao ver em perigo o filho desvalido

A raiva ferve aos atos sem sentido

Ferve o ouvido ao som de uma emoção.

 

Ferve na carne o sol em combustão

Que nos dota de tom a branca pele

Ferve d’insuportável e repele

Uma mordaz e vil insinuação

Fervem no ar as notas da canção

Que nos recorda uma ilusão perdida

Fervem em pranto memórias da vida

Que nos trazem ruídos de saudade

Ferve o desejo num corpo sem idade

Pois sem idade é todo o coração.

 

E se o ciúme ferve e dói na carne

Ao falso anúncio de traição fatal

Mais ferve a injustiça de um Natal

Que um velho passa só e abandonado

Porque é dos velhos esse triste fado

Como dos jovens é a inconsciência

Quando lhes ferve o vício em consistência

Mas se ferve o amor não se derrama

Se o soubermos manter como uma chama

Que se alimenta da nossa paixão.

 

*

Brasil/Setº/08

 

   

 

Ferve ao Poeta... em décimas

Carmo Vasconcelos

 

Fervem-lhe os sãos direitos esquecidos

Aos homens, às mulheres e às crianças

Ferve-lhe um amanhã nulo de esperanças

Para os entes mais desfavorecidos

Ferve-lhe a justiça surda e cega

Que à solta deixa ímpios e ladrões

Ferve-lhe a impunidade que lhes lega

E mete os indigentes nas prisões

– Inocentes se roubam um milhão

Culpados se com fome roubam pão!

 

Fervem-lhe ao rubro os luxos desmedidos

Vaidades sem acerto e probidade

Fervem-lhe os que de tudo desprovidos

Dia-a-dia morrem em mendicidade

Fervem-lhe as verdes matas derrubadas

Para servir aos reis da construção

Ferve-lhe o planeta que sem espadas

Mortífero se insurge à poluição

– Homens possessos dum agir macabro

Conducentes do mundo ao descalabro!

Ferve-lhe na pena o sangue do poeta

Gritam-lhe a dor as letras em cachão

Ferve-lhe n’alma a mágoa secreta

E na mente a denúncia p’la razão!

Ferve-lhe a impotência pela justiça

D’ alçar a moralidade em declínio

Ferve-lhe a mão pra comandar a liça

Em resgate da Paz em extermínio

- Na pena a garra de abolir o imundo...

Ao Poeta a força de mudar o Mundo!

 

*

Lisboa/Portugal

Fevº/2008


 

 
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